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O desgastado banner pendurado atrás do caixa do Bar do Ciclista – o mais tradicional comércio do lugarejo, criado por Vilmar e Rosana e hoje tocado pelo filho Matheus – data de 2006. Quem se dá ao trabalho de parar para ler o poema “Lugarzim Besta”, de Emerval Crespi, dá o primeiro mergulho no sentimento do que é curtir a vida em Olhos d’Água. Diz a primeira estrofe:
Lugarzim besta, sô
Num tem nada pra oiá
Uns triêrozim estreito
Cercado de mato e pé de pau
Cu’as fulozinha incarnada
Arrudiada de Bejafrô
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Nestes 14 anos, muita água passou debaixo das pontes sobre os rios Galinhas e do Ouro, que cortam a cidadezinha. Mas pouca coisa mudou. Zoin, como a cidade é carinhosamente chamada por seus moradores nativos e, especialmente, pelos forasteiros que se mudaram pra lá em busca de sossego e melhor qualidade de vida, continua sendo um
Lugarzim das rua prifumada
Das vêis chêra áio queimado
Das ôtra café torrado
Chêra inté dama da noite
Qui o vento metido a açoite
Leva consigo pra bêra da istrada
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Dois anos antes de Emerval ter a inspiração para o texto que é uma espécie de hino não musicado de Zoin, numa certa noite de carnaval, o potiguar Jácio Fiúza, recém-chegado do Recife (PE), entediado com o paradeiro em pleno Reinado de Momo, se juntou a Hélio Pinheiro, Arnaldo David, Rubão, Adenilson e Jair e com suas respectivas companheiras, foram para a rua.
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Os homens vestidos de mulher e sem qualquer instrumento musical, desfilaram pelas ruas. Cantavam marchinhas de carnaval à capela, a plenos pulmões. O movimento chamou a atenção dos moradores. Alguns acharam engraçado, outros desrespeitoso. De uma forma ou de outra, estava fundado, ali, o Bloco das Piranhas, que neste 2020 comemora 16 anos de irreverência.
Ô cantim parado
Onde as muié sai suzinha
No caminho da missa, à noitinha
Sem importá cum hômi marvado
Arremedo da chama da vida
Donde a igrejinha tenta inxergá a mina
Num tem ferro, num tem vidraça
Só moça e véia debruçada
Na janela oiando a vida passá
O Bloco das Piranhas cresceu e se multiplicou. Em 2019, mais de 1 mil foliões seguiram a bateria de Mestre Badala, o patriarca da Família Queiroz, e de outros músicos e alguns percussionistas de ocasião que se juntam a eles.
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Foto: Fátima Kossta
A Prefeitura de Alexânia, da qual Olhos d’Água é distrito, disponibiliza banheiros químicos instalados na Praça Santo Antônio. A cotização (vaquinha) dos piranheiros e simpatizantes paga até carro de som, que faz as vezes de trio elétrico, e outros itens da infraestrutura do bloco, como faixas e adereços.
Vêis em quando inda se iscuita
Bem prá acolá
O rangê dum carro de boi
Que insiste num si interrá
A junta incangada puxando
Os causo desse lugá
No domingo de carnaval, os músicos saem da porta da Família Queiroz, na entrada de Zoin. Dali, Eles seguem com os amigos e encontram com as “primas” na concentração, normalmente em um boteco. O bloco parte rumo à Praça Santo Antônio e o povo vai se juntando no caminho, com paradas estratégicas em frente aos principais bares.
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Foto: Fátima Kossta
Lugarzim besta, sô
Das vidinha tudo pequena
Qual fulozinha branquinha
Miúda e prifumada
Qui brota nos laranjá
Nesse dia, o poema de Emerval dá lugar ao batuque, à alegria e à irreverência de quem, em pleno 2020, ainda cultua a forma de brincar carnaval do início do século passado. As Piranhas, neste ano, vão pra avenida com a marchinha do artista plástico Pedro Jorge. A puxadora, mais uma vez, será a cantora Cacau, que promete não deixar ninguém parado:
Assanha, meu bem, assanha
Eu vou sair no bloco das piranhas (Bis)
Camaleão e drag queens
Tá todo mundo soltinho assim (Bis)
Sai do armário meu bem, sai do armário
Deixa de manha, você é uma piranha (Bis)
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E as Piranhas deram cria. Em 2019, as mulheres e companheiras dos homens fantasiados resolveram criar uma dissidência. Lu Anacleto, Danuza Jeker, Tatiana Barros, Alec Brasil, Beth Alves fundaram o Bloco Santinhas do Pau Oco, com a produção de Alda Lima. Elas usam véu no rosto e muitas até se vestem de freira. Como se fosse uma vingança, saem na segunda-feira, também ao meio-dia.
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Foto: Fátima Kossta
Dispensam bateria. Usam alto-falantes e carro de som para propagar seu lema para quem quiser ouvir. E vão levar para as ruas de Zoin a marchinha de autoria do cantor Beirão em parceria com Lu Anacleto e Alda Lima:
Esse ano eu vou brincar com as Santinhas do Pau Oco
Eu bebo, mas não tô louco (Bis)
É muita purpurina
Elas tão chegando
Nas ruas de Olhos D’Água
Elas vão passando
Não fique triste
Vamos brincar
As Santinhas do Pau Oco
Tão botando pra quebrar
(*) Para quem em Brasília, o melhor caminho para chegar a Olhos d’Água é pela BR-060. O acesso é por Alexânia. Ao todo, são 90 Km de distância. Todo o percurso está asfaltado.