Embora não haja dados oficiais precisos, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) pode afetar até 7% da população brasileira, com maior prevalência em crianças e adolescentes de 6 a 17 anos. O distúrbio, caracterizado por sintomas como desatenção, hiperatividade e impulsividade, é tema da terceira reportagem do Brasília Capital sobre saúde mental, que encerra a série.
Em um período de 20 anos, a prevalência do TDAH subiu de 6,1% para 10,2% no mundo, segundo dados da Pesquisa Nacional de Entrevistas de Saúde dos Estados Unidos. A explosão de casos também no Brasil fez com que a Câmara dos Deputados avançasse, aprovando no último 26 de maio um projeto de lei que assegura a estudantes com transtornos de aprendizagem, como o TDAH, recursos de acessibilidade nos processos seletivos para a educação superior, incluindo o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.
Segundo o psicólogo Bruno Nogueira, da Universidade de Brasília (UnB), o transtorno apresenta três formas principais: predominantemente desatento, predominantemente hiperativo-impulsivo e combinado. Para o diagnóstico, o paciente deve apresentar um número mínimo de sintomas que persistam por pelo menos seis meses e tenham começado antes dos 12 anos.
“Os sintomas de desatenção envolvem dificuldade em manter o foco, cometer erros por descuido, esquecer compromissos e perder objetos essenciais. Já a hiperatividade e a impulsividade se manifestam por inquietação constante, falar excessivamente e agir sem pensar nas consequências”. Nogueira alerta para o cuidado com a romantização do transtorno nas redes sociais, que banaliza sintomas e confunde desatenção ocasional com TDAH.
Problema é diagnosticado na infância
O especialista indica que, na infância, o TDAH costuma ser percebido por dificuldades escolares, problemas de socialização e baixa autoestima. Já na adolescência, o risco de evasão escolar e de desenvolvimento de transtornos associados, como ansiedade e depressão, aumenta.
É o caso da estudante de Pedagogia Ana Carolina Souza, que descobriu ter TDAH aos 15 anos, após ser diagnosticada inicialmente com ansiedade. “Sempre fui considerada ‘desatenta’, ‘distraída’ e ‘impulsiva’”, relata. Aos 20 anos, iniciou tratamento com remédios e terapia, que ajudaram a controlar a impulsividade e melhorar a concentração, embora os desafios diários continuassem.
Ana descreve a organização como um dos maiores obstáculos. “Começo a arrumar algo e logo me distraio. Uso post-its, aplicativos, mas manter isso é difícil”. Hoje, aos 22, a jovem também convive com o Transtorno do Processamento Auditivo Central, que dificulta a percepção e o processamento de informações sonoras, tornando conversas e aulas ainda mais complexas.
“Sempre foi difícil manter a concentração em aulas longas e organizar prazos para trabalhos. No trabalho, a impulsividade e a dificuldade de priorizar tarefas causaram alguns problemas, mas aprender a pedir ajuda e comunicar minhas dificuldades foi essencial. Socialmente, o TDAH afeta a escuta: às vezes, me distraio no meio de conversas ou sou impulsiva ao falar”.
Dificuldades na vida adulta
O impacto pode ser ainda maior na vida adulta e gerar até dificuldades na gestão financeira e maior risco de acidentes e problemas de sono. Para o engenheiro de software Reno Viana, 31 anos, a rotina com TDAH vira uma batalha. “Impacta totalmente minha vida. Tenho muita dificuldade de ter rotina, de organizar as atividades do dia a dia, tanto do trabalho, quanto na minha vida pessoal”.
Apesar das tentativas de tratamento, Reno ainda sofre, mesmo após o diagnóstico: “Fiz um tratamento quando descobri, mas, na época, não tive muito resultado. Recentemente, voltei a tentar, tomando medicação. Me ajudou um pouco na questão da concentração, mas acho que ainda não como eu esperava”.
CRISE DE RELACIONAMENTO – O TDAH também pode provocar crises de relacionamento devido a esquecimentos, dificuldades de comunicação e explosões emocionais.
O psicólogo Bruno Nogueira ressalta que, para casais em que um dos parceiros tem TDAH, a psicoeducação (técnica que relaciona os instrumentos psicológicos e pedagógicos com objetivo de ensinar o paciente e pessoas ao redor sobre a patologia), rotinas estruturadas e suporte terapêutico são fundamentais.
“O tratamento do TDAH é multimodal, incluindo medicação, psicoterapia, suporte educacional e laboral, além de grupos de apoio, que ainda são pouco estimulados no Brasil”, acrescenta.
Tratamento eficaz
Na avaliação do psiquiatra Antônio Alvim, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o tratamento medicamentoso apresenta uma alta taxa de eficácia e é complementar a exercícios físicos e psicoterapia. O acesso gratuito, contudo, é um entrave.
“A dificuldade de acesso à medicação pelo SUS gera impactos negativos para os indivíduos e para a economia do país, que perde cerca de R$ 1 bilhão ao ano devido a acidentes, instabilidade no emprego e comorbidades associadas ao transtorno”, pontua.
Ao contrário da crença popular, o psiquiatra lembra que o TDAH não é pura e simplesmente falta de atenção. “É uma condição neurobiológica em que o cérebro tem escassez de dopamina e está sempre buscando estímulos que a liberem, podendo levar ao hiperfoco, em que a pessoa se prende a uma atividade e esquece o resto”.
FALTA DE PACIÊNCIA – O que funciona para uns, não necessariamente se aplica a todos. O técnico de enfermagem Ezequiel Wagner Rosa, 31 anos, foi diagnosticado com TDAH na infância. Apesar de usar estratégias de organização, a falta de paciência, segundo ele, atrapalha.
“Acabo conferindo as coisas várias vezes, se tranquei o carro ou a porta. Se coloco a chave em outro lugar que não o usual, não lembro onde deixei e procuro por toda casa. Minha letra fica feia quando tenho preguiça de escrever. Meu hiperfoco aparece em jogos, desenho na infância. Em outras atividades, me dedico até cansar e abandono”.
O mesmo ocorre com a profissional de comunicação Letícia Barbosa, 31 anos, diagnosticada em momentos distintos da vida. Após anos de dúvidas e mudanças de médicos, uma medicação sugerida por um endocrinologista a fez se sentir bem pela primeira vez. A partir daí, um diagnóstico neuropsicológico confirmou o TDAH.
“Quando criança e adolescente, tinha dificuldade de ficar quieta, de me concentrar em matérias que pareciam mais difíceis. Tomar decisões, até hoje, pode ser um sofrimento. Pessoalmente, a impulsividade já causou problemas, principalmente por falar demais ou de forma inadequada, o que me leva a pedir desculpas com frequência”, conta.
Os depoimentos evidenciam que o TDAH, na prática, é muito mais que um “jeito de ser”. “Nosso cérebro não produz dopamina na mesma medida que o de uma pessoa neurotípica, e isso torna tarefas simples muito mais difíceis do que parecem”, completa Letícia.