No último dia 17, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal lançou uma Portaria, a 272, que reedita normas de conduta para os servidores no atendimento aos pacientes e impõe penalidades até pelo que seja considerado vazamento de informação – o que pode incluir denúncias da precariedade das condições de trabalho e de assistência à população. O Sindicato dos Médicos do Distrito Federal vai realizar uma mesa redonda, na quinta-feira (02) para discutir esse assunto – médicos, autoridades e a imprensa foram convidados.
Como reafirma o que já é previsto, a portaria só tem efeito no campo das percepções e sensações, mas não no campo administrativo ou na melhoria da oferta de serviços de saúde à população. Não tem nenhum efeito no déficit de servidores e leitos hospitalares, na falta crônica de medicamentos e materiais para realização de exames e procedimentos nem na inadequação das estruturas físicas das unidades de saúde sucateadas ao longo dos anos.
Desprovida de sentido para fortalecimento da prática administrativa, a Portaria 272/19 da SES-DF se mostra uma peça de marketing de governo e filosófica. É uma aplicação no serviço público do conceito do “Homem Cordial”, cunhado com base na definição do caráter do brasileiro como hospitaleiro, generoso, gentil e emotivo.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda consolidou o conceito, em 1936, na obra Raízes do Brasil. Mas, sob a luz das ciências sociais, definiu que as virtudes do “Homem Cordial” não são sinônimos de bons modos, muito menos de bondade ou amizade. A atitude polida do indivíduo seria, segundo Buarque, um disfarce que se presta à manutenção do status quo, o estado das coisas, eximindo a parte boazinha, gente boa, o cordial, de sua obrigação formal na relação com o outro.
Isso transposto à situação da rede pública de saúde do Distrito Federal se traduziria no seguinte registro de um usuário de hospital público à ouvidoria do GDF: “não tinha remédio, nem conseguiram um leito para me internar, fiquei deitado no chão do corredor do hospital e passei um mês para fazer minha cirurgia de urgência. Mas os médicos e enfermeiros foram muito bonzinhos comigo”.
Por absurdo que pareça, esse tipo de situação acontece – basta olhar as cartas de agradecimento nos murais e as faixas nas portas dos hospitais para comprovar. Subsequentes relatórios da Ouvidoria do DF mostram que, apesar de a Saúde figurar sempre entre os primeiros motivos de queixa dos usuários de serviços públicos no DF, a pasta é a que recebe mais elogios. Pesquisas realizadas pelo SindMédico mostram a mesma coisa: quando o paciente consegue o atendimento, ele aprova. Reclama quando não consegue o que precisa. Ou seja: o problema é o acesso. E quem tem a obrigação de garantir o acesso e os meios para o bom atendimento é o governo e a gestão da Saúde.
Longe de favorecer relações cordiais entre as pessoas, as condições de trabalho na saúde pública do Distrito Federal estão adoecendo os servidores – provocando especialmente depressão, pânico e doenças de fundo psicoafetivo. Cada um faz o que pode para sobreviver e manter a sanidade e ainda dar um atendimento minimamente digno aos pacientes. Mas, como os pacientes, a maioria se sente aviltada e hostilizada pelo Estado.
A boa vontade na relação com o próximo é uma necessidade cada vez maior em todos os ambientes. Na saúde não é menos. É preciso, no entanto, arregaçar as mangas e adotar as medidas práticas para mudar a realidade com mais do que sorrisos e expressões de afabilidade. Os problemas da assistência à população não serão resolvidos por portaria nem por decreto.