Márcia Turcato (*)
Jefferson Cardia Simões, 64 anos, tem uma formação ainda pouco conhecida. Ele é Glaciólogo – estuda o gelo. Foi o primeiro brasileiro a ter essa especialização, na década de 1980, quando o Brasil vivia uma ditadura. Longe de ser um pesquisador caricato de filmes, Simões é conversador e entusiasta da popularização da ciência. Por isso, sempre oferece exemplos cotidianos para explicar seu trabalho. Casado há 40 anos com Ingrid Lorenz Simões, tem dois filhos e dois netos e é natural de Porto Alegre (RS). Foi em sua sala de vice-Pró-Reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que me recebeu por mais de duas horas para falar de seu trabalho mais recente.
Viagens
O professor retornou da Antártica no dia 9 de janeiro de uma expedição iniciada em 4 de dezembro. Ele viaja ao Polo Sul desde os anos 1990 e também já esteve no Ártico e em outras regiões geladas do planeta. O trabalho consiste, basicamente, na realização de análises químicas da atmosfera e na coleta de testemunhos de gelo, que é uma espécie de paleontologia glacial, ou técnica palio climática.
País tropical
De acordo com Simões, “o Brasil precisa parar de achar que é um país tropical isolado. Isso não existe. É uma fantasia. Foi uma fantasia geopolítica das décadas de 1950/60. Para o meio ambiente global, as regiões polares são tão importantes quanto os trópicos. Não teríamos clima se não houvesse essa diferença de temperatura entre os trópicos e os polos. Centrar a visão só na Amazônia está errado. A questão da Amazônia é mais ampla porque é território nacional, tem a biodiversidade de fauna e flora e tem população humana. Mas nós também temos responsabilidade na Antártica. Do ponto de vista ambiental, a Antártica e a Amazônia são regiões interdependentes e mudanças climáticas sempre ocorreram e vão continuar ocorrendo, mas a estratégia que precisamos adotar é de ações mitigadoras e de adaptação”.
Gelo antártico
O gelo antártico tem até 2 Km de espessura. São cerca de 27 milhões de Km cúbicos de gelo, o suficiente para cobrir todo o Brasil com um manto de gelo de 3 Km de espessura (o território brasileiro tem 8,5 milhões de Km².
A pesquisa
A última expedição do brasileiro, que custou 800 mil dólares, contou com parcerias financeiras do CNPq, National Geographic e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RS (Fapergs). As pesquisas feitas pelo Brasil alcançaram um período de três mil anos e as amostras coletadas estão guardadas no Instituto de Mudanças do Clima, no Maine (EUA), na temperatura de 20 graus centígrados negativos.
Cem metros de perfuração no gelo equivalem a 400 anos de tempo. As informações contidas no gelo coletado mostram qual é a concentração de água, isótopos, minerais e outros elementos. Com isso, os cientistas têm condições de avaliar como era o clima e a vida naquele período, comparar com outras épocas e fazer projeções.
Contaminação por urânio
Pesquisas recentes na Antártica indicam que o gelo continha traços de contaminação por urânio, resultado de uma mina a céu aberto na Austrália no século 19. Também foram encontrados traços de cobre no gelo, por conta de minas no Chile, mas que diminuíram graças à intervenção recente do governo de Gabriel Boric (assumiu a presidência do país em março de 2022) que adotou medidas de mitigação da poluição.
Pesquisadores da França e da Itália já alcançaram testemunhos de gelo de 800 mil anos na Antártica, com perfurações de 3.200 metros na área do Domo C, também conhecido como Dome Circe, Dome Charlie ou Dome Concordia, a 3.233 metros acima do nível do mar, um dos vários cumes ou cúpulas do manto de gelo antártico. Em breve, pesquisadores da China, em parceria com europeus, pretendem alcançar 1,5 milhão de anos no Domo A, perfurando 4 mil metros no meio do continente Antártico com uma temperatura de 93 graus centígrados negativos durante o inverno.
Água acidificada
A água do oceano austral está ficando acidificada. Por excesso de CO2, cerca de 30% dele já foi parar nos oceanos desde a primeira Revolução Industrial no século 18. Isso altera a flora e fauna dos mares, pode modificar correntes marítimas, mudar a temperatura na costa e tem efeito sobre o clima nos continentes.
As regiões polares são mais sensíveis às mudanças climáticas e elas nos dão sinais do que está acontecendo, explica o professor. O derretimento das geleiras expõe as rochas, e aquece a região porque propaga calor. A temperatura subiu 3 graus no Ártico em relação ao ano 1900. A navegação marítima é afetada com o degelo no mar, surgem novos portos, novas rotas comerciais, nova geopolítica e até militarização em novas fronteiras.
Saiba+
O professor Jefferson Cardia Simões é titular de Glaciologia e Geografia Polar da UFRGS, vice-Pró-Reitor de Pesquisa da UFRGS, Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e pioneiro da Ciência Glaciológica no Brasil. Atualmente, é Vice-Presidente do Scientific Committee on Antarctic Research/Conselho Internacional de Ciências (SCAR/ISC), com sede em Cambridge, Inglaterra. Obteve seu PhD pelo Scott Polar Research Institute, University of Cambridge, em 1990. É pós-doutor pelo Laboratoire de Glaciologie et Géophysique de l’Environnement (LGGE) du CNRS/França e pelo Climate Change Institute (CCI), University of Maine, EUA. Leciona e orienta alunos de graduação e pós-graduação em Geociências e Geografia. Sua carreira é dedicada às Regiões Polares. Publicou 210 artigos científicos, principalmente sobre processos criosféricos. Pesquisador do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR). É consultor ad-hoc da National Science Foundation – NSF (Office of Polar Programs). Ele participou de 28 expedições científicas às duas regiões polares, criou o Centro Polar e Climático da UFRGS, a instituição que lidera no Brasil a pesquisa sobre a neve e o gelo. Coordena a participação brasileira nas investigações de testemunhos de gelo antárticos e andinos e faz parte do comitê gestor da iniciativa International Partnerships in Ice Core Sciences (IPICS). Recebeu o Prêmio Pesquisador Destaque da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) por sua contribuição à pesquisa antártica.