Ricardo Nogueira Viana (*)
Chegou o tão esperado 30 de outubro, dia do 2º turno das eleições. Não diferente do restante do Brasil, a Capital Federal também se encontrava sob tensão devido à forte polarização entre os candidatos e eleitores.
Brasília foi dividida em 19 zonas eleitorais e minha família foi direcionada a um bairro de classe média alta, próximo ao local onde residimos. Até aí, tudo bem, caso não fôssemos uma família negra.
Assim como no primeiro turno, chegamos ao local de votação com camisas pretas, quebrando paradigmas, pois, além da predominância de pessoas brancas, o nosso traje não estava a caráter. Parecíamos não termos sido convidados. A maioria vestia verde e amarelo, e outros poucos, vermelho.
O cenário era tenso, próximo à beligerância. Além dos dois times, havia policiais, fiscais, mesários e nós. Ninguém sabia de que lado estávamos. Explico: as nossas vestimentas traziam em sua parte anterior os dizeres “Vidas Negras Importam”. Atrás, escrevemos o número 56.
As faces dos eleitores eram de puro questionamento, pois era perceptível que tinham a intenção de nos inserir em um dos dois lados. Uma eleitora aproximou-se da minha esposa e falou que me conhecia. “Ele é jogador de futebol?”.
Para muitos, somente um negro ligado ao esporte ou à arte poderia estar ali. Um afrodescendente na classe média alta é como o processo de fecundação – vários espermatozoides concorrem e, às vezes, um deles consegue romper o óvulo e gerar um ser.
Em razão do racismo estrutural e sistêmico que vivemos, poucos de nós alcançamos camadas mais abastadas da sociedade.
A nossa manifestação foi silenciosa. O número que ostentamos correspondia ao percentual de negros e pardos da população brasileira: 56%. Somos a maioria, que, desde o tempo do Brasil colônia, é dirigida por uma elite branca, a qual se alterna no poder.
Povo que alcançou a falsa sensação de liberdade após uma abolição desprovida de cuidados e que, de forma desordenada, passou a viver às margens da sociedade. Que ergueu e ainda edifica esta nação com trabalhos árduos e precários e, até hoje, carece de políticas públicas voltadas à educação, habitação, saúde, saneamento básico e segurança.
Predomina no trabalho informal e que, em decorrência do descaso do poder público, é o que mais morre de forma violenta e é predominante em favelas e cadeias. Pessoas que foram tolhidas de sua ancestralidade, pois, a partir de nossa terceira ascendência, já não enxergamos nomes, apenas sentimos o sangue: dos navios negreiros, dos castigos, dos assassinatos e dos estupros.
No debate que antecedeu o pleito eleitoral, havia um painel de sugestões de temas. Em um deles o tópico era o racismo. Entretanto, nenhum dos candidatos se atreveu a colocá-lo em pauta.
Curiosa a esquiva, não? Não seria esse um tema interessante para ser abordado, posto abrangera maior parte da população? Até porque o último dirigente da Fundação Palmares, responsável pela preservação e promoção da cultura afro-brasileira, deu declarações que nada contribuíram para a edificação e afirmação do negro na pirâmide social brasileira.
Há de se destacar que tivemos avanços com o Estatuto de Igualdade Racial e com a Lei de Cotas, a qual abraçou e fez com que mais negros batessem às portas da classe média. Diga-se de passagem, as únicas legislações no pós-escravidão em prol da negritude.
A lei de cotas está em processo de revisão para o ano vigente e, caso não seja estendida, com o Congresso conservador que se formou após o pleito eleitoral, enfrentará dificuldades.
O exaurimento deste ato normativo seria considerado razoável se o Estado tivesse investido na capacitação de professores, na educação integral e na escola pública, onde se encontra a maioria dos discentes negros. Mas não o fez.
Não sou um jogador, tampouco um artista. Estudei em escolas públicas, escolhi cargos públicos e consegui abrir o óvulo da classe média. Vidas negras importam e não suportam mais o descaso da sociedade e do poder público.
Nossa família votou e minha filha exerceu a sua cidadania dessa maneira pela primeira vez. A adolescente estava radiante com a oportunidade de influenciar na situação política do país. É o poder do sufrágio.
Rogamos ao novo Presidente da República que consiga olhar para o passado com o intuito de avaliar o presente e construir um novo futuro à população negra.
E, quem sabe, na próxima eleição alcancemos um país diferente, com mais comida, emprego, educação e mais negros nos fazendo companhia na nossa zona eleitoral. Nossa cor é preta, parda, verde, amarela e vermelha. Somos Brasil.
(*) Delegado-Chefe da 6ª DP e Professor de Educação Física