Chegamos à quarta e última semana dedicada a casos especiais de emprego do acento grave. Ao longo dos últimos dias, você provavelmente fez várias reflexões acerca da forma como você entende a crase!Neste artigo, quero falar acerca de um entendimento praticamente pacificado entre os que dominam esse conhecimento gramatical: Não se usa crase entre palavras repetidas.Essa afirmação tem a sua validade! Existem locuções formadas por repetição de palavras que, de fato, não admitem o emprego do acento. Veja comigo:
- Dia a dia, aprendo mais sobre o nosso vernáculo.
- Pouco a pouco, a esperança chegava ao coração daquele povo.
- Eles enfim estavam frente a frente.
- Pé a pé, a criança andava pela casa.
Não sei se você percebeu, mas essas locuções são indissolúveis, ou seja, é impossível separá-las, mesmo com a mudança da ordem direta. Faça os seguintes testes: Primeiramente, pegue cada uma das expressões sublinhadas e coloque-as no início ou no final de cada período; em seguida, tente deslocar somente parte da locução. Apenas a primeira experiência será bem-sucedida.
Agora, veja comigo os seguintes exemplos:
- É preciso dar vida à vida.
- Eu quero ter disposição à disposição.
Se você for se basear em opiniões reducionistas (popularmente conhecidas como “macetes”), provavelmente dirá que o emprego do acento grave, nas duas ocorrências, é inadequado; as orações 5 e 6, todavia, estão gramaticalmente corretas! E sabe por quê? Dessa vez, não se trata de locuções indissolúveis, mas sim de trechos sintaticamente independentes entre si!
Em 5, o verbo “dar” é transitivo direto e indireto. O OD é “vida”; o indireto, “à vida”! É até possível deslocar um dos complementos (à vida, é preciso dar vida). É uma construção semelhante aé preciso dar cor à vida; dar emoção à vida; dar vivacidade à vida.
Em 6, situação semelhante ocorre! O verbo “ter” é transitivo direto. O OD é “disposição”. “À disposição” é um adjunto adverbial que indica o modo como se quer ter a disposição. O deslocamento é novamente permitido (à disposição, eu quero ter disposição). É como dizer eu quero ter vitalidade à disposição ou eu quero ter disposição disponível.
A cada dia, certifico-me mais de que a nossa prática linguística cotidiana é um grande laboratório, e que nós somos os cientistas responsáveis por usá-lo. A língua e suas interações devem ser experimentadas, e não meramente prescritas.
Dominar adequadamente uma língua está longe de ser apenas a memorização de um conjunto de regras ou de etimologias baseadas em línguas mortas; ter o entendimento pleno de um idioma significa admitir que este é um organismo vivo e apto a sofrer alterações.
O verdadeiro linguista não teme as mudanças vernaculares, e sim as deseja – até porque toda língua evolui (e não o contrário), em conformidade com as necessidades dos usuários de uma língua. Pense nisso!