Um sem-número de mulheres com bebês no colo se reúnem em parques e praças de diversas cidades para amamentar. O ato vital e natural ainda causa estranhamento em algumas pessoas e impõe desafios às mães. O mamaço se tornou um protesto político contra episódios de discriminação contra a amamentação em locais públicos. Apesar de polêmica, a ação não é crime. Pelo contrário. À revelia da controvérsia, os índices de amamentação na capital federal têm destaque nacional. Dados no Ministério da Saúde mostram que 49,5% das mães alimentam os filhos exclusivamente com leite materno até o sexto mês de vida — quarta melhor estatística do Brasil. Quando a perspectiva é até 1 ano de idade, a marca chega a 65,4% — segundo lugar no ranking (Leia quadro).
Pelo menos quatro mamaços vão ocorrer nos próximos dias no DF. Planaltina, Sobradinho, Taguatinga e Lago Sul são as cidades que vão receber os atos em comemoração à Semana Mundial de Aleitamento Materno. Na última sexta-feira, a reportagem acompanhou um protesto no Jardim Botânico. Lá, cerca de 150 mulheres simplesmente alimentaram seus filhos contra o patrulhamento enfrentado em shoppings, feiras, lojas, espaços culturais, entre outros lugares. A opressão parece ter se tornado um problema crônico na cidade — apesar de não haver estatísticas oficiais. Entre terça e sexta-feira, o Correio ouviu 20 mães em fase de amamentação. Dessas, 16 (80%) dizem já ter passado por constrangimento ou reações preconceituosas. Na semana passada, a atriz Tainá Müller, 34 anos, vaticinou: “Amamentar não é uma tarefa fácil”.
A servidora pública Anne Caroline Santos, 33, foi cerceada na praça de alimentação de um shopping no Cruzeiro enquanto amamentava o filho caçula, de 5 meses. “Uma vigilante disse que havia um local restrito para isso e pediu que eu parasse de alimentar o José Miguel. Eu me senti constrangida”, conta. Apesar do incidente, a moradora da Octogonal não se acanhou. “Quando eu fiquei grávida da Maria Gabriela, minha primeira filha, eu era mais tímida, escolhia os lugares. Hoje, não tenho mais restrição. Eu me lembro de ela ter ficado com fome na rua”, detalha. Mesmo com a militância, ela tem medo de mostrar o rosto. “O ato de colocar a mama para fora escandaliza as pessoas. Não tem como interpretar isso como um ato obsceno, mas a polêmica é grande”, reclama.
Lívia Pozzetti de Souza Minatel, 31 anos, é líder do movimento A Hora do Mamaço Brasília. Para ela, o essencial é envolver a família inteira no aleitamento. “Não pode ser a mãe sozinha numa luta solitária. Tem machismo envolvido. O corpo da mulher ainda é ligado à subserviência ao homem. Os mamaços lutam contra isso”, explica. Desde 2012, ela participa do movimento. No ano seguinte, organizou um dos primeiros protestos do tipo em Brasília. “Ainda falta chegar a muita gente, mas vejo melhoras. Porém, ainda temos que alcançar muitas mães. Temos que incentivar o aleitamento”, destaca. Ela mantém um site, com quatro mulheres mães.
A relação da sociedade com a amamentação, segundo os livros de história, vem se transformando ao longo dos tempos. Na França no século18 e no Brasil no século19, quem alimentava os bebês eram as amas de leite. No século 20, a figura materna assumiu a função. Quando a mulher chegou ao mercado de trabalho, houve novo revez, com a inserção de alimentos industrializados. Porém, um conceito resistiu indelével à passagem do tempo: amamentar deve ser algo reservado. Por isso, tanta gente se incomoda ao ver uma mãe amamentando em público, segundo a coordenadora do Banco de Leite da Secretaria de Saúde, Miriam dos Santos. “Ainda há interpretações com conotação distorcidas da amentação em público, mas incentivamos a visão pública como uma coisa normal. A grande questão é a cultural. Muitos jovens nunca viram ninguém amamentando, o que era comum antigamente”, explica.
Recomendação
A amamentação reduz, sozinha, em 13% a mortalidade infantil, segundo o Ministério da Saúde. Além disso, previne doenças crônicas não transmissíveis — principal causa de morte no DF na última década — e evita complicações, como diarreia e males respiratórios. “Pretendemos, para a próxima década, intensificar as ações e ampliar o aleitamento materno. Desejamos formar profissionais para fomentar isso na atenção básica”, ressalta Thereza De Lamare, coordenadora da Saúde da Criança e Aleitamento, do Ministério da Saúde. Para ela, os episódios de discriminação são pontuais. “Não acho que haja um retrocesso. Cada vez mais, está sendo incentivado, inclusive no trabalho”, avalia. A recomendação é que o aleitamento materno vá no mínimo até os 2 anos de idade.
“Eu me desconstruí como médica. Perguntava às pacientes como era amamentar quando estava grávida. Não tinha essa visão. Algumas pessoas olham com ar de reprovação”, lembra a médica Michele Nunes do Amaral Lopes, 34. Ela amamentou a filha mais velha, Stela, 3 anos, há até alguns meses. Parou quando descobriu que estava grávida de Enzo, 9 meses. A moradora do Sudoeste reclama do discurso preconceituoso e ancorado em poucas informações. “O meu pai cobria a minha mãe e não gostava de amamentação em público. É difícil para o homem desconstruir a imagem de um seio para a mama. Ele já me criticou algumas vezes, mas, hoje, eu faço campanha.”
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