Há 25 anos, Maria dos Reis, 59 anos, dorme e acorda com a aflição de não ter documento que prove que ela é dona do lote onde mora na Estância Mestre D’Armas 1, em Planaltina. “A escritura nos dá mais segurança e valoriza o imóvel”, diz, mal sabendo sobre uma ação na Justiça que pode mexer com a vida dela.
Com apenas três anos de titular de um lote na Estância III, Maria Doralice de Oliveira, 53, tem apenas uma sessão de direito da sua casa, que afirma ter comprado de um antigo morador. Assim como os demais, ela também não sabe como ficará seu futuro ali. “Quando o GDF anunciou a regularização, eu cheguei a ficar alegre, mas estou vendo que ainda não será desta vez que vou ter a escritura da minha casa”, lamenta.
Usucapião – Em 14 de julho de 2014, o juiz da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, Carlos D. V. Rodrigues, julgou procedente o pedido de aquisição por usucapião extraordinária da Fazenda Mestre D’Armas, hoje Setor Habitacional Mestre D’Armas, com mais de cinco mil comércios residências. Entre elas, as de Maria dos Reis e de Maria Doralice.
Na ação que tramitava desde 2012, os autores, cerca de 20 pessoas físicas e jurídicas, alegaram que, “por justo título e boa-fé, são efetivos proprietários e possuidores há mais de 25 anos das 11 glebas que hoje compreendem as Estâncias Mestre D’Armas I, II, III, IV e V, e o Condomínio Recanto do Sossego, que formam o Setor Habitacional Mestre D’Armas, onde moram cerca de 30 mil pessoas.
Embora não tivessem apresentado qualquer documento oficial registrado em cartório que comprovasse que eram realmente os donos das 11 glebas, o magistrado acatou o argumento dos autores. Segundo eles, “a medida judicial é adotada em razão da impossibilidade do tabelião da época para proceder a regularização dos seus títulos, jamais estes (os autores) tendo experimentado qualquer impugnação ou contestação”.
Quando a sentença judicial foi tomada em 2014, o Setor Habitacional Mestre D’Armas já contava com uma verdadeira cidade, embora ficasse sob o guarda-chuvas da Região Administrativa de Planaltina. Mas nem isso foi levado em consideração para o magistrado indeferir o pedido dos autores, que é o de posse das 11 glebas da antiga Fazenda Mestre D’Armas.
Como se ignorassem as cinco mil famílias que vivem lá há décadas, os autores da ação de usucapião disseram que foram compelidos a concordarem com a permanência por causa da Lei Complementar 803 de 209, que transformou as Estâncias I, II, III, IV e V e o Condomínio Recanto do Sossego em Área de Regularização de Interesse Social (ARIS).
Regularização – Segundo os autores, com base nessa normativa, na ocasião o Governo do Distrito Federal os “instou, por meio de notificação judicial e termo de ajustamento de conduta, a procederem à regularização urbanística e fundiária dos loteamentos erguidos naquelas glebas”.
No despacho que favoreceu aos autores de titularidade das 11 glebas, o juiz Carlos Rodrigues contraditou a argumentação do GDF de que a intenção dos ditos titulares da terra era a de promover novo parcelamento.
“Equivoca-se o (Governo do) Distrito Federal ao pressupor que o pedido declaratório de usucapião tenha o propósito de criar lotes (…). Deve-se notar que a inicial se reporta a 11 glebas e não lotes, sendo que a menor delas foi descrita inicialmente com área de 1,9003 hectares, o que obviamente não constitui padrão de parcelamento condizente com as condições e o potencial construtivo ocupacional do lugar”, argumentou o magistrado.
Advogado aponta fraude processual
Para o advogado da Associação dos Moradores do Recanto do Sossego e Estâncias (Amores), que representa as cinco mil famílias moradoras das 11 glebas, que é o Mestre D’Armas hoje, Marivaldo Pereira, o que os autores da ação praticaram foi fraude processual.
“Se eles fossem realmente os proprietários, teriam entrado com uma ação pedindo que a Justiça na época obrigasse o cartório a reconhecer o título deles. Quando eles entram com uma ação de usucapião para reconhecer os títulos, eles fogem da análise da cadeia sucessória, que seria essencial para confirmar a validade do título que eles apresentaram. Isso é fraude processual, pois alegaram ter uma posse para conseguir o direito à propriedade, mas essa posse é dos moradores que estão lá”, diz o defensor.
Ainda segundo Marivaldo, um dos autores da ação é o Condomínio Recanto do Sossego, que era a prefeitura da época e apenas mudou a razão social. “O prefeito deu uma procuração para o advogado entrar com ação em nome da prefeitura, não avisou aos moradores e ficou ao lado de quem estava querendo tomar a terra dos atuais moradores. O juiz achou que estava dando a posse para as pessoas”, avalia o advogado.
GDF quer regularizar
Em meio a esse imbróglio, em novembro do ano passado o GDF, por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab-DF), deu o que seria um passo rumo à regularização daquelas residências em Mestre D’Armas. O governador Ibaneis Rocha inaugurou, na ocasião, um posto avançado de regularização do setor habitacional, que será responsável por 4.600 imóveis.
A Codhab explicou que, “com amparo na sentença mencionada acima e em consonância com preceitos constitucionais, em especial o Art. 5º, inciso XXIII; as disposições das Leis Federais 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) e 11.977/2009 (Programa “Minha Casa Minha Vida); Lei Orgânica do DF; Lei Complementar Distrital nº. 803/2009 (PDOT – Plano Diretor e Ordenamento Territorial); Leis Distritais nºs. 735/2008 e 3.877/2006 e em especial ao Decreto nº 40.886/2020, promoverá a titulação de domínio e a remissão dos custos e investimentos de infraestrutura realizada pelo Distrito Federal em benefício dos ocupantes da ARIS Mestre D’Armas, na Região Administrativa VI – Planaltina-DF”.
A Companhia acrescentou, ainda, que “firmará instrumento contratual próprio, com os proprietários de direito, fixando responsabilidades entre as partes, assim como os critérios de remissão dos custos de infraestrutura suportados pelo Distrito Federal em benefício da comunidade e vai criar uma minuta padrão de escritura declaratória de compra e venda, título este que será assinado pelos particulares e os respectivos ocupantes adquirentes, para posteriormente ser levado a registro junto ao Cartório de Registro de Imóveis”.