Fui interno na sala \”Mestre\” do Hospital Calixto Garcia, no coração de Havana, em Cuba, e tive por maestro um galeno já de idade, negro, chamado Vicente Ernesto Peña. Senhorzinho franzino, sarcástico, arguto e genial, a quem sempre serei grato e renderei homenagens.
Foi ele quem conduziu-me pelos caminhos da paixão pela ciência e, com seu exemplo, introjetou-me um ideal de vida fundamental: a preponderância da consciência do dever a cumprir acima de qualquer interesse monetário ou material – ainda que me reprochasse o cabelo despenteado, a barba por fazer e o aspecto amarrotado do meu jaleco.
Quem não conhece a história de Cuba, não imagina em que tradição, ou com base em que valores forjou-se sua medicina e seu sistema de saúde. País que, com o triunfo da revolução, em 1959, perdeu três mil médicos de uma só vez (metade dos que havia), que preferiram emigrar a colaborar com o novo governo que se impunha pela guerrilha, após derrotar uma sanguinária ditadura apoiada pelos Estados Unidos, desde a distante Sierra Maestra, às montanhas azuladas do Escambray.
Sentia-me orgulhoso por fazer parte do “Ejercito de Batas Blancas” de 35 mil estudantes estrangeiros, de 136 nacionalidades, que havia tido o privilégio de aprender medicina na ilha, de graça, como um membro a mais da família.
Éramos prova da vocação solidária e internacionalista da revolução, sintetizada no projeto da Escuela Latinoamerciana de Medicina (ELAM) – ideliazada por Fidel Castro –, cujo sedimento fez-se reconhecer no labor do Contingente Internacional Henry Reeve, brigada médica especializada em desastres e grandes epidemias.
Dói na alma perceber que a desinformação, o viés ideológico, e até mesmo o preconceito foram estopim de um processo que culminou no triste término da colaboração médica cubana aqui no Brasil.
Iniciada no governo Dilma, essa colaboração de um país que, em 55 anos, cumpriu missões internacionais em 164 nações, nas quais participaram mais de 400 mil trabalhadores da saúde – tendo garantido, além dos benefícios extras que recebem no país da missão, seus salários integrais e todos os direitos sociais e laborais como funcionários de carreira em Cuba –, fosse na luta contra o ebola na África, a cólera no Haiti, ou no inadvertido terremoto que devastou o Paquistão.
Nos cinco anos que participou do programa Mais Médicos, Cuba colaborou com mais de 20 mil médicos, atendendo a 113 milhões de pacientes, com aprovação de 95% da população, e determinante presença na Amazônia, regiões periféricas e distritos indígenas. Com os médicos cubanos, mais de 700 municipios brasileiros conheceram médico pela primeira vez, em 500 anos.
Nesse momento de despedida, num misto de indignação e nostalgia, por ver tanta mentira cristalizada – mas fortalecido na dignidade do povo cubano –, só consigo lembrar uma frase, que me recebia todos os dias, na entrada daquele que será meu eterno hospital de referência: “Vale, pero millones de veces más, la vida de um solo ser humano que todas las propriedades del hombre mas rico de la teirra.” Traduzindo: “Vale milhões de vezes mais a vida de um só ser humano, do que todas as propriedades do homem mais rico da terra”.
(*) Brasiliense formado pela Escuela Latinoamericana de Medicina (Elam-Cuba)