“Até que ponto a participação da vítima contribuiu, mais ou menos fortemente, para a deflagração da tragédia”, foi a argumentação do lendário advogado e imortal Evandro Lins e Silva que levou à absolvição de Doc Street no julgamento pelo assassinato da atriz Leila Diniz. Essa tese da “culpabilidade da vítima” é a mesma que o Governo do Distrito Federal usa para dirigir a sentença da população aos profissionais da saúde, especialmente aos médicos.
Fala-se que “falta médico” e abusa-se da ambiguidade da expressão: o profissional não foi trabalhar ou não há quantidade suficiente de profissionais no Sistema Único (SUS) de Saúde do Distrito Federal para atender a demanda crescente? A resposta é que o déficit de médicos e demais profissionais da saúde é crônico. Sem contratações e sem ações efetivas para garantir a saúde dos trabalhadores, subsequentes governos têm deixado a situação piorar.
Os afastamentos por férias e licenças legais são previsíveis – esse agendamento é antecipado e a gestão tem de organizar o fluxo para que não falte pessoal. Em qualquer instituição pública ou privada a coisa funciona do mesmo jeito. Mas com falta de gente, desorganização administrativa e um nível de absenteísmo elevado por motivo de adoecimento, ocorrem lapsos constantes e os pacientes têm motivo de sobra para reclamar.
Em 2011, quanto o DF tinha 2,56 milhões de habitantes, dos quais cerca de 1,9 milhão dependia do atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), o número de médicos estatutários era maior do que o de hoje: 5.398.
Hoje, os 5.238 estatutários e 226 celetistas do Instituto de Gestão Estratégica da Saúde do DF (IGES-DF) têm de dar conta de uma população que ultrapassa 3 milhões de habitantes. E nem contamos com a explosão populacional do Entorno. Só o aumento da população local foi de quase 18%.
Criaram-se as Unidades de Pronto Atendimento, os centros de saúde passaram a alojar equipes da Estratégia Saúde da Família, mas não contrataram uma quantidade adequada de profissionais na ponta do atendimento e não deram condições de trabalho para que os contratados permanecessem. Quem está saindo do serviço público de saúde não são os servidores antigos, são os novos.
Quem fica, suporta o fardo. Tem muita gente que trabalha doente para não deixar o paciente sem assistência. E quem cuida do cuidador?
Em vez de atacar os problemas reais, dar condição de trabalho adequadas aos profissionais e adotar medidas para a saúde ocupacional do servidor, o governo se omite e transfere ao servidor por adoecer. E todos seguimos sem solução. A má gestão causa adoecimento, com elevado índice de absenteísmo. E as vítimas dessa situação sendo responsabilizadas por estar na condição de vítima – uma tragédia anunciada a cada dia nas portas das emergências, UPAs e unidades básicas de saúde.