Márcia Turcato (*)
O presidente Luís Inácio Lula da Silva autorizou o controle do espaço aéreo sobre o território Yanomami com a criação da Zona de Identificação de Defesa Aérea (Zida). Ao Ministério da Defesa caberá o fornecimento de dados de inteligência, o transporte aéreo logístico de equipes da Polícia Federal, do Ibama, do pessoal da Saúde e de outras instituições públicas. Também serão reabertos postos de apoio da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e de Unidades Básicas de Saúde (UBS), além do fornecimento de água potável e alimentos relacionados à cultura Yanomami.
Ao anunciar as medidas, Lula disse que ,
ele (Bolsonaro) é um dos culpados para que aquilo acontecesse. Ele que fazia propaganda para que as pessoas fossem para o garimpo, para que usassem mercúrio. Está cheio de discurso dele falando isso. Então decidimos tomar uma decisão: parar com a brincadeira. Não terá mais garimpo. Pode demorar um pouco, mas nós vamos tirar todos os garimpos”.
Ao mesmo tempo, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a apuração de “possível participação de autoridades do governo Bolsonaro na prática de supostos crimes de genocídio, desobediência e quebra de segredo de Justiça relacionados à segurança de comunidades indígenas”.
A Petição 9.585 assinada pelo ministro Barroso, determina que sejam enviadas cópias do processo, para providências cabíveis, à Procuradoria-Geral da República, ao Ministério Público Militar, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à Superintendência Regional da Polícia Federal em Roraima.
Barroso diz que documentos que chegaram ao seu conhecimento “sugerem um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação”.
Genocídio começou com o “massacre de Haximu”
O que acontece no território Yanomami é a instalação do crime organizado com a conivência das instituições públicas e suporte empresarial transnacional. Há também o crime ambiental e a violência contra os indígenas, resultado das atividades predatórias do garimpo ilegal que atua em parceria com jagunços, porque o crime precisa estar cercado de mais crime para prosperar.
Se há alguma dúvida se a desgraça do povo Yanomami é genocídio ou não, é possível afirmar com toda a certeza que é genocídio sim, foi declarado como tal em 1996 e reforçado no ano 2000 pelo Ministério Público Federal de Roraima e pelo Superior Tribunal de Justiça ao analisar o crime que ficou conhecido como “o massacre de Haximu”, ocorrido em agosto de 1993.
Naquela data, indígenas Yanomami foram vítimas de uma emboscada por garimpeiros ilegais. Na narrativa dos assassinos, teriam sido mortas 12 pessoas, incluindo um bebê. Mas os indígenas contam que foram mortas cerca de 200 pessoas. Não foi possível confirmar o número exato porque na cultura Yanomami o nome de quem morre não é mais mencionado.
O crime foi a julgamento três anos depois, em 19 de dezembro de 1996, e o juiz concordou com o entendimento dos membros do MPF de que o caso se tratava de tentativa de extermínio da etnia, e não somente homicídio. Em análise de recursos dos réus, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região mudou o entendimento e determinou que os acusados fossem julgados pelo crime de homicídio diante de júri popular.
O MP recorreu então ao STJ. Em 12 de setembro de 2000, a 5ª Turma do STJ decidiu por unanimidade retomar o entendimento de que o crime foi contra a etnia indígena, mantendo as penas originais determinadas pelo juiz federal. Sim, foi um massacre. Sim, foi tentativa de genocídio.
Violência trazida pela BR-210
A socióloga Márcia Maria Oliveira, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia, explica que a violência contra os Yanomamis, agora amplamente divulgada com a crise sanitária que matou mais de 500 pessoas da comunidade, começou na ditadura militar, na década de 1970, com a construção da BR-210 (a Perimetral Norte), ligando Roraima ao Amazonas, também chamada de Caminho da Morte pelo povo Yanomami.
Márcia Maria se vale dos relatos do médico paulista Marcos Antonio Pellegrini, que atende a população Yanomami em Roraima desde antes da construção da BR-210. De acordo com o médico, os indígenas não tinham problemas de saúde além daqueles naturais da região, e ele se dedicava a aprender com os pajés os procedimentos da medicina indígena.
Os militares, ao abrirem a floresta em território indígena, permitiram que agravos desconhecidos chegassem ao local, como gripe, hanseníase, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis, além de violência, especialmente contra as mulheres.
“A situação dos Yanomami é muito cruel. Estou abalado”. Quem diz é o enfermeiro obstetra Leandro Morais, que trabalhou mais de dois anos em um hospital de Boa Vista, com mulheres refugiadas e migrantes da etnia Warao, da Venezuela. Ele conta que há mais de 700 pacientes na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) e que no dia 27 de janeiro ficou pronto o hospital de campanha da Força Aérea (FAB).
Além disso, chegou um reforço de 12 profissionais de saúde da Força Nacional de SUS e militares médicos. O hospital de emergência fará a triagem dos pacientes. As crianças que precisarem de internação serão encaminhadas para o Hospital Santo Antônio e os adultos para o Hospital Geral de Roraima ou Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazaré.
Mercúrio e máquinas
O uso do mercúrio, que não é permitido, era legal em Roraima. Em 2021, o governador do estado sancionou a Lei 1.453/2021, de licenciamento para a lavra garimpeira, permitindo o uso de mercúrio. A lei foi declarada inconstitucional pelo STF em agosto de 2022. O governador Antônio Denarium (PP) disse que os garimpos ilegais não são responsáveis pela crise sanitária dos Yanomami e defendeu a atividade como “fonte de renda”.
Numa coisa ele tem razão: os garimpeiros não são os responsáveis, pelo menos não os únicos. Eles fazem parte da engrenagem do crime organizado. Escudados nos garimpeiros, a maioria mão de obra barata, estão mineradoras transnacionais, empresários, políticos que dão suporte à atividade e um crescente comércio de máquinas e equipamentos para mineração que depreda o solo, causa erosão, derruba a floresta e afugenta os animais.
Teia de violência
Para completar o cenário de devastação, em maio de 2022 o governador de Roraima sancionou a lei 1701/2022, que proíbe a destruição de maquinários utilizados em atividades ilegais de garimpo. A lei é de autoria do deputado estadual George Melo (Podemos). Ao que tudo indica, o Executivo e o Legislativo locais estão agindo para dar suporte ao milionário negócio que prospera no estado a partir de atividades ilegais de mineração que levam junto tudo de perverso que acompanha a criminalidade, como a violência sexual, o tráfico de armas, da fauna, da flona, de drogas e abusos de todo o tipo. É essa teia de violência que assassinou o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips em junho de 2022, no Amazonas.
Dados do projeto MapBiomas mostram que a área minerada no Brasil cresceu mais de seis vezes de 1985 a 2020. A expansão do garimpo coincide com o avanço sobre territórios indígenas e unidades de conservação. De 2010 a 2020, a área ocupada pelo garimpo dentro de terras indígenas cresceu 495%. No caso das unidades de conservação, o crescimento foi de 301%.
Nesse conflito, os povos indígenas não têm a menor chance de sobrevivência, explica a socióloga Márcia Maria.
“Eles não estão preparados para esse tipo de enfrentamento, que é complexo, que envolve transações comerciais. Não é apenas garimpo ilegal que existe lá, existe uma organização criminosa”.
Vida insustentável
A população Yanomami é estimada em cerca de 30 mil indivíduos, com inúmeras comunidades e seis línguas faladas, e ocupa o maior território indígena do Brasil, com 9,6 milhões de hectares nos estados de Roraima e Amazonas e áreas da Colômbia e da Venezuela.
Os Yanomami têm um estilo de vida sustentável baseado em quatro atividades de sobrevivência, explica a socióloga Márcia Maria: a agroflorestal, com o plantio de mais de 40 tipos de batatas, milho e mandioca, trabalho feito pelas mulheres e seguindo tradições culturais, como o tempo lunar; a coleta de frutas da floresta; a pesca e a caça, que é limitada a poucas espécies animais porque envolve questões místicas e religiosas.
Com o avanço do garimpo ilegal sobre as comunidades, que utiliza mercúrio para separar o ouro – o que é proibido, mas permitido em Roraima –, e da contaminação da terra por coliformes fecais, as lavouras não progridem, os peixes morrem, as árvores frutíferas foram derrubadas e os animais fugiram.
A contaminação por dejetos fecais lançou no meio ambiente agentes biológicos desconhecidos para os Yanomamis. E o organismo deles não conseguiu responder e reagir, provocando verminoses e outras doenças. Pela estimativa de entidades não governamentais, há 50 mil garimpeiros na região. E a contaminação pelos dejetos produzidos por essas pessoas se espalhou por um amplo território por veiculação hídrica.
Desnutrição igual à da Nigéria
Muitos Yanomami, principalmente as crianças, estão desnutridos e desidratados. A desnutrição é do tipo Kwashiorkor que, entre outros sintomas, provoca perda de cabelo, alteração na cor do cabelo e da pele, perda de massa muscular, erupção cutânea, inchaço nos pés e barriga e pode levar à morte.
Crianças de quatro anos de idade pesam o mesmo que um bebê, com 3 ou 4 quilos. Kwashiorkor é a mesma síndrome que acometeu crianças na Nigéria durante a guerra de Biafra (1967- 1970), que matou por fome milhares de pessoas.
Quem é Márcia Maria?
A socióloga Márcia Maria foi nomeada como perita pelo Papa Francisco para participar da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica, realizada em outubro de 2019 em Roma, Itália.
Cerca de 100 mil pessoas foram ouvidas simultaneamente nos nove países que compõem a Pan-Amazônia (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, as duas Guianas, Peru, Suriname e Venezuela).
Todo o material produzido nessa escuta foi sistematizado e transcrito de forma sintética e pedagógica em um documento. Márcia Maria participou do grupo de redação final do documento do Sínodo. A Igreja Católica tem um importante papel social na região, dando suporte às comunidades tradicionais.
Situação foi mostrada em maio de 2022
Em maio de 2022, o JÁ divulgou o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O relatório mostrou que em 2020 ocorreram 182 assassinatos de indígenas, número 63% superior ao de 2019, quando 113 indígenas foram mortos em atos de violência. Na época, a grande imprensa, incluindo os jornalões gaúchos, não divulgou nada a respeito do relatório, muito menos sobre a situação já dramática da população Yanomami.
O Cimi também indicava que na terra Yanomami é estimada a presença ilegal de cerca de 50 mil garimpeiros. Além de levarem violência, espalharam doenças e o vírus da covid-19. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de 43 mil indígenas foram contaminados pela covid-19 e pelo menos 900 morreram por complicações da doença no ano de 2020.
A paralisação total da demarcação das terras indígenas foi anunciada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro durante a campanha em 2018. Foi uma diretriz do seu governo. É ainda mais grave saber que Bolsonaro foi aplaudido pela plateia que assistiu a sua declaração e também quando debochou dos quilombolas, outro grupo de povos originários. O Cimi aponta que, das 1.299 terras indígenas no Brasil, 832 (64%) seguiram com pendências para sua regularização durante todo o governo Bolsonaro.
Bolsonaro não estava sozinho em seu plano de deixar o povo Yanomami sofrer as mais variadas formas de violência, como agora vemos em amplas reportagens nos mais variados veículos de imprensa. Sim, o projeto era de genocídio. A mídia não viu porque optou por aguardar que Bolsonaro “se adequasse à liturgia do cargo”, como ouvimos inúmeras vezes os comentaristas de política argumentarem.
Por tudo isso, em maio de 2022 foi lançada a campanha #EuVotoPelaAmazonia, em Brasília, pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam-Brasil), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O objetivo da iniciativa foi o de ajudar a sociedade a refletir sobre a importância de eleger políticos e governos comprometidos com a ecologia integral, a agroecologia, a justiça socioambiental, o bem-viver e o direito dos povos e de seus territórios.
No vasto território amazônico, compartilhado por nove países, vivem mais de 180 povos indígenas, sendo que alguns grupos são isolados. O agronegócio, o garimpo, a extração ilegal de madeira e os grandes projetos econômicos são alguns dos fatores que contribuem para o desmatamento e o empobrecimento dos recursos naturais e dos povos que habitam a Amazônia e colocam em risco a integridade física dos indígenas e seu modo de vida, além de também ameaçarem as populações tradicionais.
A campanha #EuVotoPelaAmazonia se estendeu até o mês de setembro, véspera da eleição majoritária, e desenvolveu várias iniciativas de conscientização, como rodas de conversa sobre a Amazônia, vídeos, materiais para redes sociais e roteiro de celebrações para as comunidades de dentro e de fora da Amazônia, além de reuniões com procuradores do Ministério Público e com vereadores e deputados dos estados amazônicos.
Nos últimos anos, o bioma amazônico foi explorado violentamente com queimadas, desmatamentos, invasão de terras indígenas e o avanço do agronegócio e da mineração sobre territórios protegidos. A substituição da floresta nativa por pastagem para o gado, além dos garimpos ilegais, é uma das maiores agressões ao bioma.
Atlas de conflitos
Em setembro de 2022, uma rede de entidades não governamentais lançou o primeiro Atlas de Conflitos Socioterritoriais Pan-Amazônico 2017-2018, cuja organização foi coordenada pela Comissão Pastoral da Terra. A iniciativa traz dados de Bolívia, Brasil, Colômbia e Peru. Além de mapear conflitos entre os anos de 2017 e 2018, a publicação é composta também por textos analíticos sobre a conjuntura dos países, bem como casos emblemáticos de violação de direitos dos povos da região da Pan-amazônia.
O bispo da prelazia de Itacoatiara (AM) e vice-presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, contestou as afirmações do ex-presidente Bolsonaro na abertura da 75ª Assembleia das Nações Unidas (ONU) de que são os povos indígenas e os caboclos os principais responsáveis por atear fogo no bioma. “Nós sabemos que estas palavras não condizem com a verdade”, disse. O levantamento registra 1.308 conflitos ativos – ou seja, com desdobramentos – no cenário dos anos 2017 e 2018, muitos dos quais seguem constantes. A pesquisa considera números qualificados estado por estado, departamento por departamento, nos quatro países. Ao todo, as lutas socioterritoriais envolveram 167.559 famílias amazônicas.
O Brasil compreende 60% da área territorial da Pan-Amazônia e encabeça a lista do maior número de conflitos, 995 do total, seguido por 227 conflitos na Colômbia, 69 no Peru e 17 na Bolívia. No recorte 2017-2018, apenas no Brasil foram 131.309 famílias atingidas por estes conflitos, seguidas do Peru, envolvendo 27.279 famílias, enquanto a Colômbia documentou 7.040 famílias e a Bolívia, 1.931.
Em números gerais, na Panamazônia, pesa mais a situação do Brasil, onde a maioria dos territórios em conflito (59%) abrange terras sem legalização e/ou com falta de titulação legal: comunidades tradicionais e indígenas sem território reconhecido e demarcado, ou áreas de posseiros sem reconhecimento legal.
(*) Jornalista, autora do livro “Reportagem: da ditadura à pandemia”