Mario Pontes (*)
RIO – Moro há mais de meio século no Rio de Janeiro. E entre os dois ou três principais motivos que pesaram na decisão de mudar-me para cá, destacava-se a necessidade de livrar-me até da lembrança dos sulfurosos ares que havia respirado na infância, adolescência e primeiros anos de juventude. Realista, sabia que os daqui – como nada no mundo – não podiam ser cem por cento puros, mas decerto eram mais leves que ospor mim inalados em anos anteriores, especialmente os mais remotos.
Nasci em 1932 numa pequenina cidade do interior cearense. E foi como se tivesse nascido em um pobre vilarejo da Europa medieval, assombrado pelo Anjo da Inquisição e sua espada de fogo. Noventa e nove por cento do que podiam pensar e fazer aqueles milhões de oprimidos da época encaixava-se na categoria dos pecados mortais, que impunham o sem-fim das chamas do Inferno. E mortais podiam ser tanto as fantasias eróticas de um garotinho de dez anos quanto os pequeninos porém inaceitáveis desejos de algum desvalido pé de chinelo.
O Rio certamente não era o paraíso da liberdade; e como sempre fui realista, não esperava encontrá-la – na sua completude– em qualquer agrupamento humano. Mas, apesar das deficiências, era um lugar em que o grau de civilização não estava abaixo da média aceitável. O que para a maioria dos integrantes da minha geração implicava – e ainda implica – antes de tudo em não viver envolvido pela sombra do medo; não ter de perguntar cada manhã qual a nova proibição engendrada e validada enquanto dormia; sentir-se livre, viver sem medo de perder a liberdade de ser o que é e não o que outros querem que seja.
É verdade, leitor, que de vez em quando – como sempre aconteceu neste Planeta – apareciam cacos de vidro nas ruas e acabávamos arranhando os pés. Tivemos, por exemplo, de engolir a truculência do governador Carlos Lacerda, que se afastara anos-luz das ideias progressistas de sua juventude e passara a falar e agir como um senhor de senzala. Sabia-se, porém, que o eleitorado não iria perpetuá-lo no poder. Tivemos também um jornalista chamado Gustavo Corção, que costumava ameaçar sair da redação de chicote em punho a fim de punir quem discordasse de seus desvarios inquisitoriais. Eram exceções, no entanto.
Hoje temos um prefeito – o Sr. Marcello Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus – que volta e meia deixa escapar um tiquinho de suas predisposições bem pouco democráticas. Na semana passada, um cidadão de boa vontade retirou de suas estantes algumas dezenas de livros usados, ergueu uma barraquinha tamanho guarda-chuva em certa praia da Zona Sul, e se pôs a distribuí-los gratuitamente. Logo apareceram agentes da Prefeitura com ordens para desmontar a barraca e mandar seu dono para casa.
À semelhança daqueles que testemunharam o fato, ou tomaram conhecimento dele pelos meios de comunicação, até agora me sinto perplexo e continuo a indagar-me: a que ou a quem aquele homem ofendia por distribuir livros de graça? À higiene da praia? À pureza azul do céu? Ou estaria ele ameaçando a salvação das almas pelo simples fato de que o conteúdo dos seus livros não era sagrado, mas profano?