Há 46 anos, o pioneiro de Taguatinga Lino de Almeida teve uma visão. Uma espécie de chamado, segundo a sua crença: cuidar das crianças em situação de rua e vulnerabilidade. Era a contrapartida ao patrimônio que Deus lhe havia dado até àquela altura da vida.
A missão foi aceita de pronto. O primeiro grupo que ele cuidou – dando abrigo, escola e alimentação – era composto por dez garotos. Muitos deles não sabiam nem se haveria comida no dia, e acabaram podendo sonhar com o futuro. Hoje têm profissão, inclusive como policiais militares.
Desde aquele remoto ano de 1976, Lino não parou mais de ajudar as crianças. Foi assim até seus derradeiros dias, em 1993. Porém, o projeto não acabou após sua morte. Sua mulher, Maria da Paz, e os filhos Adonay Sândalo de Araújo Almeida e Adélia Maria da Paz deram sequência ao trabalho. E o sonho concretizado de Lino hoje se chama Casa Transitória de Brasília.
Donos de um grande terreno na QSF 1 de Taguatinga, em 2011, por uma ordem superior – não divina, mas da justiça, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) – para que não abrigassem mais os meninos na propriedade de mais de 9 m², por se situar em Área Especial, quando o certo seria fixá-la num setor residencial.
Creche
Então, para não deixar ao sabor da vontade de governantes as centenas de crianças e adolescentes que a Casa Transitória de Brasília já atendia, a família resolveu se associar à construtora João Fortes Incorporadora e transformar o abrigo em creche.
A empresa construiria duas torres de apartamentos e, em troca, faria um pavimento inteiro, com 12 salas de aula, refeitório. A estrutura teria capacidade para 350 crianças passarem o dia inteiro, recebendo até cinco refeições.
A promessa de entrega era para quatro anos. A obra, de fato, está pronta, mas a João Fortes ainda não a liberou. Pior: começou a atrasar alguns pagamentos de locação de imóveis que foram alugados para abrigar as crianças enquanto a construção não ficasse pronta.
A angústia de Maria da Paz
Noventa crianças e adolescentes foram levados para a QSD 27. Mas dona Maria da Paz tem passado dias de angústia. Além do aluguel atrasado, a João Fortes não está pagando as contas de água e luz, conforme se comprometeu no acordo.
O descumprimento do contrato por parte da João Fortes com os herdeiros também impactou em outras creches que a Casa Transitória mantém na QS 6 do Areal, onde estão 167 estudantes da creche; na Candangolândia, que comporta 132 crianças; e na propriedade vizinha ao lote na QSF 1, uma casa alugada pela construtora que atende a 20 crianças na QSF 2. Nesta, a situação é pior, porque está sem água e luz por falta de pagamento.
“No projeto, consta a construção de um local para supermercado. Com o dinheiro do aluguel, a gente ajudaria nas despesas da creche. Mas isso não se concretizou também”, lamenta Adonay.
Calote ameaça futuro de meninos e meninas
Por causa desse calote da João Fortes Incorporadora, o futuro de muitos meninos e meninas em situação de rua ou vulnerabilidade – quando a família representa um perigo para a integridade da criança – está ameaçado.
Muitas delas não poderão ter a mesma sorte de Diogo Gontijo, 19 anos. Quando passou a ser tutelado pela instituição juntamente com o irmão Gabriel, 22, Diogo era muito pequeno. Mas hoje está terminando o ensino médio. E pensa em fazer faculdade e concurso de bombeiro militar.
Quando perguntado o que a Casa Transitória representa na vida dele, diz: “Representa pai e mãe. Porque pai e mãe é quem cria. Nos meus momentos mais difíceis, foram eles que me deram apoio. Sou eternamente grato por isso”, diz Diogo, apontando para os irmãos Adonay e Adélia.
Dívidas somam R$ 16 milhões
As dívidas da João Fortes Incorporadora para com a Casa Transitória somam um montante de R$ 16 milhões, dinheiro suficiente para arcar com as despesas da creche. “Não estamos aqui só para cobrar o dinheiro. Queremos que a empresa nos entregue a obra, que está pronta”, reivindica Adélia.
A João Fortes entrou com pedido de recuperação judicial e aguarda um posicionamento positivo dos herdeiros para a Justiça autorizar. Então, segundo os familiares, uma forma de a empresa pressioná-los a assinar o acordo seria a não entrega da creche e do andar do futuro supermercado.
O Brasília Capital entrou em contato com a João Fortes Engenharia, mas não havia recebido resposta até a publicação desta matéria.