“Surpreender-se” – escreveu o sempre surpreendente pensador espanhol Ortega y Gasset – “é o esporte, o luxo específico do intelectual”. E como gosto de observar o que se passa, sem me dar ao duvidoso cuidado de andar sempre com uma câmera na mão e uma trena no bolso, deixo-me surpreender com freqüência, e só raramente sou derrotado por um a zero na contagem dos proveitos.
A primeira e agradável surpresa dos últimos dias me foi trazida pelo velho e doméstico telefone de mesa. E, fato raro, a chamada não procedia de São Paulo, nem a voz era a daquele sujeito que, dia sim outro também, tenta me vender algum treco que até hoje não descobri o que vem a ser. Tratava-se de uma voz conhecida, mas como fazia anos que não a ouvia, me foi um tanto difícil identificá-la.
– Aqui é o Ivo Barroso, ainda se lembra?
— Claro! – Como esquecer o amigo, cuja ficha curricular é antes de tudo uma fileira de livros de poesia, escritos ou traduzidos por ele?
– Pode almoçar comigo na quinta? Aqui mesmo no Leblon, em um res-taurante pertinho de minha casa.
Fui. E enquanto os pratos não vinham, Ivo extraiu dois livros da bolsa. Tinham cara de recém-editados. Qual sua relação com eles? Ao invés de responder, chamou-me a atenção para o primeiro, um volumezinho de bolso, capa ilustrada com a imagem de uma caravela. Título: A carta de Pero Vaz de Caminha. — Como você sabe – disse – há várias edições dele no Brasil. Mas, passados cinco séculos, o original do escrivão da frota de Cabral tornou-se quase ininteligível para os leitores atuais. Tratei, pois, de copidescá-lo. E em certas passagens quase tive de traduzi-lo para o português de hoje… Como está dito aí no prefácio, fiz algo que os filólogos já chamaram de tradução interlingual.
Aplaudi e ele me passou outro volume com o mesmo formato. Título: Meu Rubaiyat. A palavra remete a um gênero de poesia cultivado em países da Ásia, entre eles a Pérsia e a Turquia. O rubai, formado por quatro versos, sofre mínimas variações nas línguas em que é escrito. Mais importante do que suas características formais, relativamente simples, é o fato de que os primeiros exemplares foram escritos, há muitos séculos, como uma exaltação do hedonismo, aceitação de uma concepção filosófica que concebe e proclama o prazer e a felicidade como bens supremos.
O gênero começou a tornar-se conhecido no Ocidente quando em meados do século xix Edward Fitzgerald traduziu para o inglês os Rubayat do filósofo e poeta persa Omar Khayam (1047-1142). No Brasil, chegaram ao grande público em 1928, pela mão de Otávio Tarquínio de Souza, que fez sua versão com base na tradução francesa de Franz Toussaint.
Ivo não resistiu à tentação de introduzir na tradução de Tarquínio “algumas rimas e cadências”, a fim de “aproximá-la da forma poética original”. O resultado dessa tentação é o volume de bolso intitulado Meu Rubayat, jóia gráfica que ele me oferece entre duas rodadas de vinho.
Outro escritor com quem tive recentemente um breve e valioso contato foi Márcio Catunda, cearense nascido em Fortaleza, autor de vários livros de poesia. No seu caso, a surpresa começa com o título do livro que acaba de publicar: Dias insólitos. Sua leitura é uma experiência insólita, pois revela um feixe de qualidades capazes de envolver e conquistar o leitor.
A poesia multiforme e transparente de Márcio leva o leitor a partilhar com ele o temor e o tremor diante dos desconhecidos fios da extático, do receio que acompanha a esperança, da negação com a qual frequentemente cruzamos nas escadarias da transcendência. Para corresponder às expectativas de um autor cidadão do mundo, a poesia de Márcio criou asas. Com elas os tempos e lugares da criação parecem ter abdicado de seus limites, limpado suas trilhas e acendido as luzes que clareiam a sucessão de insólitos no caminho do poeta.