No dia que o Brasil atingiu a triste marca dos 340 mil mortos pela covid-19, com média superior a 4,1 mil óbitos diários, o gerente-geral de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gustavo Mendes Júnior, admitiu, em entrevista exclusiva ao Brasília Capital, que o lockdown seria uma iniciativa apropriada para reduzir a transmissão do novo coronavírus. “Nossas medidas envolvem o distanciamento social, uso de máscara, higiene e todas as maneiras de evitar contato. Porque o vírus é transmitido pelo contato, por meio das mãos, da saliva, da respiração. Então, quanto mais a gente evitar o contato, melhor”, disse. Farmacêutico formado pela USP-Ribeirão Preto e servidor da Anvisa há 18 anos, Gustavo Mendes também não recomenda o chamado “tratamento precoce” para a doença: “A Anvisa só trata o que que a gente chama de uso on label, ou seja, só o que estiver em bula”. “Não incluímos em bula nenhuma informação sobre tratamento precoce porque os estudos não mostraram essa possibilidade”.
Como tem sido o trabalho na Anvisa nesses 13 meses de pandemia? – É realmente uma situação nova, que a gente nunca tinha passado, esta crise sanitária e de saúde global. Isso exigiu medidas extraordinárias para nós. Tivemos que reorganizar várias formas de trabalho, porque a gente tem que dar respostas rápidas e ao mesmo tempo não abrir mão dos critérios de qualidade, segurança e eficácia. Então, tem sido um grande desafio sim.
Qual a importância de se preservar a credibilidade da Anvisa nesse contexto? – A Anvisa começou um trajeto de reconhecimento internacional que culminou em 2019, quando foi aceita no ICH (Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos de Produtos Farmacêuticos de Uso Humano), que é um dos principais fóruns de agências reguladoras. A gente senta na mesma mesa que Japão, EUA e União Europeia para tomar decisões sobre como aprovar vacinas e medicamentos. Por isso, o reconhecimento internacional que a gente tem deve ser preservado. Ele ajuda o País a ter certeza de que os produtos que serão disponibilizados aqui seguem os mesmos critérios rígidos de qualidade.
Mas, na terça-feira (6), a Câmara Federal aprovou a importação de vacinas sem a aprovação da Anvisa. Como vê isso? – A nossa posição, como área técnica, é sempre de preservar o que a gente entende como critérios de qualidade, segurança e eficácia. Todo mundo que sai de casa para vacinar quer ter certeza de que o que está colocando no braço é uma vacina de qualidade e que não vai causar nenhum mal. E nós, como agência reguladora, somos treinados para isso; somos pagos para fazer esse tipo de avaliação. É claro que quando é aprovado lá fora, se for por uma agência transparente, mostrado os dados e deixar tudo claro para a gente, não precisamos fazer todo esse trabalho aqui novamente. Só precisamos verificar se tem alguma coisa específica para o Brasil. Mas, sem a nossa análise, não dá para ter certeza de que a vacina que é aplicada realmente vai causar o efeito que se pretende.
A Sputnik V, que conta com um lobby pesado no Congresso Nacional e já teve mais de 60 milhões de doses compradas por 12 governos estaduais é confiável? – Ela está no processo de avaliação. A gente já fez uma série de discussões com a União Química, que é empresa que representa o laboratório no Brasil. Nessas reuniões temos recebido dados que mostram se a vacina realmente funciona e é segura. Ainda estamos avaliando. Então, não dá para confirmar isso. A gente tem que passar por essas etapas, que são necessárias. Os dados precisam estar disponíveis para que seja possível tomar essa decisão.
De acordo com a decisão da Câmara dos Deputados, seria para começar a importar imediatamente, e a Anvisa tem sete dias para liberar a compra. É possível aprovar uma operação tão grande em um prazo tão curto? – A lei e a normativa que a Anvisa criou para regulamentar essa lei possibilitam que se não tiver todas as informações a gente pode interromper esse prazo. Eu acredito que sete dias é uma estimativa bastante desafiadora. Mas, se tiver todas as informações, a gente consegue. Se não tiver, a gente tem que interromper esse prazo para colher e solicitar mais dados. Sem os dados não dá para tomar uma decisão.
O procedimento normal é vocês mandarem uma comissão para fiscalizar a fábrica in loco. Não dá para ir à Índia e voltar e fazer esse trabalho em apenas sete dias… – Na verdade, não é em todos os casos que a gente precisa ir presencialmente. Se uma agência de referência fez inspeção, a gente pode aproveitar o relatório deles e não tem que refazer o trabalho. Mas, se ninguém foi, a gente precisa ir, porque precisa realmente ter um olhar mais crítico. A importância de ir ao local é verificar se segue todos as condições técnico-operacionais. A gente precisa saber se a fábrica vai conseguir produzir a vacina de acordo com os critérios de qualidade, porque a gente sabe que qualquer coisinha pode interferir no desempenho da vacina.
A Fiocruz está monitorando casos de trombose surgidos na Europa após a aplicação da vacina de Oxford. Como que está esse controle aqui no Brasil? – A gente tem uma equipe responsável pelo monitoramento, que significa acompanhar todos os casos graves relacionados à vacinação. Essa equipe tem feito reuniões constantes com a Agência Européia e com os países para verificar o número de casos e estabelecer o que a gente chama de relação de causalidade. A gente precisa saber se o evento está relacionado a vacinação ou não. Isso precisa de uma investigação bastante robusta para se chegar a uma conclusão. Caso a equipe perceba que o risco-benefício não compensa, vai sugerir a suspensão da vacinação.
Então a vacina da Fiocruz também está em análise – Na verdade, todas as vacinas continuam em análise constante. A gente tem que monitorar o tempo todo, para verificar se pode surgir casos. O que a gente avalia quando aprova, são os produtos químicos. Quando vai para a vida real, a gente precisa continuar monitorando para ver se existe algum subtipo de pessoa que possa desenvolver alguma reação específica. Por isso, esse balanço é contínuo.
A própria Fiocruz divulgou que já existem 92 cepas do vírus Sars-CoV-2. E elas já circulam no Brasil, sendo que três são mais contagiantes (a Amazonas, chamada P1, a da África do Sul e a inglesa). Como está esse controle? – Na verdade, já se catalogou mais de 17 mil variantes do vírus. A grande questão é que nem todas as variantes são de preocupação epidemiológica; nem todas nós vamos nos atentar mais ou estudar mais. Para que a gente possa se preocupar, ela precisa estar relacionada a maior gravidade ou maior transmissibilidade. No caso da P1, que é a variante brasileira, é a que a gente tem mais preocupação, porque é a que está aqui no país de maneira mais difundida. O que a gente tem feito é cobrar dos desenvolvedor de vacina informações sobre a eficácia das vacinas contra essas variantes. A gente acompanha esses dados. Alguns já foram gerados e serão incluídos na bula. Mas é um trabalho contínuo.
Então vocês não têm informações da cobertura das vacinas para essas cepas mais agressivas? – Pois é, os dados ainda não são conclusivos. A gente tem algumas informações saindo na mídia sobre a eficácia e tal. Só que esses dados precisam ser validados por nós. E a gente não recebeu esses dados. Assim que a gente receber, vamos avaliar e incluir na bula.
Voltando à Sputnik V. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, tomou as duas doses dessa vacina e pegou a covid-19. Dá para autorizar a compra desse imunizante para o Brasil? – Perceba que as vacinas têm um percentual de eficácia. O que os fabricantes alegaram, até o momento, inclusive aqui no Brasil, não só a Sputnik, mas todas, é a prevenção de casos sintomáticos. Isso não significa que o vírus não está sendo transmitido, mas que a vacina pode impedir esses casos e em um determinado percentual. A gente chama de efetividade quando a vê uma grande parte da população vacinada e assim bloqueando a circulação e bloqueando que os vírus que podem gerar casos mais graves. Então, não é caso individual que vai mostrar se funciona ou não. Tem que pensar como sociedade. Casos podem surgir com pessoas que foram vacinadas, sim. A ideia é que a gente acompanhe para avaliar se esse percentual vale a pena ou não, para saber de devemos trocar de vacina. Esta é a grande questão.
Então a gente pode deduzir que o Brasil peca por ter começado atrasado o processo de imunização da sociedade? – Eu acho que a vacinação tem que ser espalhada por toda a sociedade o quanto antes. Quanto antes a gente conseguir uma cobertura vacinal suficiente, mais rápido a gente consegue sair dessa situação.
Há especulações de que a tecnologia usada na Sputnik V é uma espécie de reprodução do que foi feito na vacina de Oxford. Ela perde credibilidade com isso? – Não, não perde. Na verdade, esse tipo de tecnologia a gente chama de tecnologia de adenovírus – vírus vetor. Você usa um vírus que não faz nada no corpo humano e coloca um material genético do novo coronavírus lá dentro para que lá ele possa fazer os anticorpos. É uma tecnologia usada para várias outras doenças. A grande questão é escolher qual é esse vírus. E a Sputnik escolheu dois: um é o mesmo da vacina de Oxford e o outro é o mesmo da vacina da Janssen. Então, são vírus conhecidos, que são utilizados para vetorizar de maneira bem simples. Não significa que a vacina é ruim. A questão é: a gente precisa ver os estudos para poder tomar essa decisão.
O problema é que a vacina de Oxford tem causado muitas sequelas, principalmente trombos. E com consequências graves, até mortes… – Esses dados que estão sendo divulgados, e que tanto as agências da Europa quanto as do mundo todo têm avaliado e estão atentas, são informações que ainda não foram compiladas. Ou seja, ainda não se tomou uma decisão se realmente temos que banir esse tipo de tecnologia para lidar com o coronavírus. Então, são casos que ainda estão em investigação. E aqui no Brasil, como eu disse, a gente ainda está fazendo essa avaliação para ter certeza. Ainda não dá para dizer que essa vacina é ruim. Continua valendo o balanço feito.
O Brasil já ultrapassou a barreira dos 340 mil mortos e dos 4 mil óbitos diários. Onde vamos parar? – É uma situação muito triste. Eu lembro do começo da pandemia, quando o pessoal dizia “ah, dentro de seis meses a gente vai retomar as aulas e voltar ao normal”. Ninguém imaginava e nem planejava, no pior cenário, uma situação como esta que a gente vive agora. É uma doença nova para todo mundo, para todos os cientistas. Cada dia cresce o conhecimento sobre as causas que levam a essas mutações, aos casos graves em pessoas que inicialmente não estavam no grupo de risco. É uma situação de tragédia na saúde pública. Então, a gente precisa fazer a nossa parte, manter as nossas medidas.
Entre essas medidas estaria o lockdown? – Sim. Nossas medidas envolvem o distanciamento social, uso de máscara, higiene e todas as maneiras de evitar contato. Porque o vírus é transmitido pelo contato, por meio das mãos, da saliva, da respiração. Então, quanto mais a gente evitar o contato, melhor.
Exatamente o que grande parte dos brasileiros não tem feito, a começar pelo Presidente da República… – É. Eu acho que a minha função, como profissional de saúde, é orientar, esclarecer. E como agência reguladora, a gente faz esse trabalho de divulgação científica, de esclarecimento. Precisamos das medidas de higiene e de distanciamento social para poder melhor. A vacina é sim uma solução, mas não é só ela e não é rápido. Por isso que a gente precisa continuar dessa forma.
E a questão das fake news? – Eu acho que a orientação da área da saúde é o que a gente precisa neste momento. Orientação e fontes fidedignas. Além da pandemia, a gente tem que combater as fake news que surgem no WhatsApp, cada vez mais sem referência, sem fonte, sem validação científica. É preciso divulgar informações de qualidade e eu agradeço ao Brasília Capital por esse espaço nesse sentido.
O tratamento precoce também é uma fake news que precisa ser combatida? – A Anvisa só trata o que que a gente chama de uso on label, ou seja, só o que estiver em bula. Não incluímos em bula nenhuma informação sobre tratamento precoce porque os estudos não mostraram essa possibilidade. Mas o uso off label é prerrogativa dos médicos. O médico tem que esclarecer ao paciente que aquele tratamento não está na bula, que é um tratamento experimental, que tem riscos. Mas é prerrogativa do profissional e do paciente tomar, se eles entenderem que vai fazer algum sentido.
Uma das maiores polêmicas é quanto ao retorno às aulas. O senhor acha que é possível neste momento? – Olha, eu não sei dizer. O que eu sei e posso dizer é sobre produtos e serviços. Sobre escolas, academias, comércio, shopping, eu não sei dizer com detalhes. Eu posso dizer que o distanciamento social precisa acontecer, porque é por meio do contato que a gente transmite o vírus. Então, se tiver uma estrutura adequada para garantir esse não contato… Os dados mostram que é necessário existir esse distanciamento. Portanto, é uma questão muito complexa, que precisa ser avaliada em casos específicos, em cada cidade, em cada estado, para ver a situação.