Aldemario Araujo Castro (*)
“O governador Eduardo Leite anunciou, na quinta-feira (9), que serão necessários, ao menos, R$ 19 bilhões para executar o plano de reconstrução do Estado. O cálculo baseia-se em estimativas preliminares e em comparativos com os esforços empregados para responder ao desastre ocorrido em setembro de 2023 no Vale do Taquari” (fonte: rs.gov.br).
O esforço de reconstrução está relacionado com uma catástrofe raras vezes vistas no Brasil. As dimensões da destruição, provocadas por intensas chuvas, são tão grandes que forçarão uma profunda revisão nas providências preventivas e nas ações posteriores a esses acontecimentos.
Outra consequência do desastre no Rio Grande do Sul é a perda de espaço do “negacionismo climático”. As precipitações inéditas no Sul do Brasil, não permitem que se faça uma negativa séria da magnitude da crise climática global como um dos grandes problemas atuais da humanidade.
Alguns aspectos merecem destaque. Primeiro, mais uma vez a solidariedade do povo brasileiro. Brasília chegou a registrar filas quilométricas para entrega de doações. Segundo, com o slogan “nenhuma vida será deixada para trás”, reconheceu-se a dignidade das vidas de milhares de animais resgatados por voluntários e pelo Poder Público.
Esse movimento está alinhado com a compreensão de que estamos tratando com seres sencientes, que também experimentam sensações e sentimentos, inclusive profundos sofrimentos, e são (ou devem ser) titulares de direitos elementares. Já vai muito longe na história a ideia de que os animais são coisas.
Nesse triste cenário tem prosperado a proposta de reverter os RR$ 4,9 bilhões do Fundo Eleitoral para o certame do final de 2024 em favor das vítimas da catástrofe. Em decorrência, as eleições municipais seriam adiadas para 2025 ou o ano posterior.
Registro que, apesar de defensor do modelo de exclusividade do financiamento dos processos eleitorais por intermédio de recursos públicos, reputo como excessivos os valores previstos para esse tipo de gasto. Cerca de dez a vinte por cento do numerário reservado seria mais do que suficiente para despesas espartanas nesse campo, em consonância com a realidade nacional.
A proposição é sedutora. Afinal, o volume de recursos liberado para uso em finalidade das mais nobres seria considerável. Entretanto, um razoável conjunto de consequências negativas desaconselha sua implementação. Entre elas estão: a) desorganizar o sistema eleitoral em escala nacional; b) ampliar ou reduzir mandatos eletivos; c) enfraquecer a democracia representativa, já afetada por uma profunda crise de legitimidade e, d) eliminar um giro econômico em âmbito nacional dos recursos financeiros destinados às eleições com movimentação de diversos setores econômicos e manutenção e geração de inúmeros empregos.
A alternativa ao uso dos recursos para gastos eleitorais previstos no orçamento da União, entre outras, seria a utilização, com o manejo do instrumento normativo apropriado, de menos de 3% do serviço anual da dívida pública. Em 2023, os juros da dívida pública brasileira alcançaram a astronômica cifra de 718 bilhões de reais (fonte: g1.globo.com).
A consequência dessa última proposta seria reduzir minimamente os ganhos daqueles “ancorados” economicamente no sistema da dívida pública. Por essa via, os interesses do rentismo, a face mais perversa do funcionamento econômico das sociedades brasileira e global atuais, é que seriam afetados. E, insistimos, em níveis baixíssimos.
Não custa lembrar as pertinentes palavras do economista Ladislau Dowbor: “A apropriação do excedente social por oligarquias improdutivas, como vimos, existiu em diversas épocas e com diferentes formas de organização social, mas volta hoje com uma escala e um ritmo de enriquecimento novos. Não é nova a exploração da sociedade por improdutivos, mas sim o fato do processo ter atingido dimensões que transformam o conjunto da sociedade. Quando empresários, que poderiam investir na produção, constatam que é mais lucrativo investir em produtos financeiros, ou lucrar com mais dividendos sobre ações que eles mesmos recompram, é a base mesma da acumulação de riqueza que se desloca. Não mais o capitalismo de fortunas merecidas, na medida em que geravam mais produtos e crescimento econômico: trata-se de rentismo. (…)
“Quando o endividamento ultrapassa a capacidade de pagamento da dívida, seja por juros elevados ou por volume da dívida – e os banqueiros conhecem perfeitamente a situação do cliente, seja família, empresa ou Estado – gera-se um processo permanente de transferência de recursos, o chamado serviço da dívida, que leva, por exemplo, a dívidas estudantis que pessoas aposentadas ainda estão pagando: os formandos passarão a vida repassando parte dos seus salários para banqueiros, iludidos que foram pela perspectiva de grandes ganhos que lhes proporcionaria o diploma, com a propaganda muito ativa dos bancos.
“No Brasil, em 2003, a dívida das famílias equivalia a 18% dos rendimentos; em 2012 chegou a 45%, nível não excessivo em termos internacionais, mas pagando juros estratosféricos. O financiamento da pequena e média empresa seguiu o mesmo ritmo, levando ao estrangulamento financeiro.
“Ampla pesquisa de fins de 2016, sobre o endividamento privado (famílias e pessoas jurídicas) apresentou o volume de recursos extraídos da economia real pelos bancos: R$ 1 trilhão, em um ano, equivalentes, na época, a 16% do PIB. Somando 6% de juros sobre a dívida pública, é um quinto do PIB transformado em lucros financeiros improdutivos”. (fonte: livro “Resgatar a Função Social da Economia – Uma questão de dignidade humana”).
Portanto, não parece adequado restringir a análise acerca das despesas públicas em torno de certos itens, esquecendo outros. É fundamental olhar para todas, rigorosamente todas, as árvores da floresta dos gastos públicos. O tamanho e os beneficiários dos dispêndios públicos, todos eles, precisam ser considerados nos movimentos relacionados com seus aumentos, reduções, movimentações e eliminações.
(*) Procurador da Fazenda Nacional