Outubro começou com a Polícia Civil atrás de pistas que a levem ao autor do 25º feminicídio no DF em 2019. Wellington de Sousa Lopes, 37 anos, assassinou, com 32 facadas, no Riacho Fundo 1, sua companheira Adriana Maria de Almeida, 29 anos.
O crime ocorreu no domingo (29/9). Na manhã do dia seguinte, outra mulher foi vítima de feminicídio. Tatiana Luz da Costa, 35, faleceu no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN) vítima de queimaduras que afetaram 90% do seu corpo. A principal suspeita de ter ateado fogo nela no dia 23 de setembro é sua companheira Vanessa Pereira de Souza, 34.
Jane Klebia do Nascimento Silva, delegada-chefe da 6ª Delegacia de Polícia, que atende ao Paranoá e ao Itapoã, diz que, comparando com 2018, numericamente, 2019 manteve a média do ano anterior.
“Não existe aumento absurdo de feminicídio. Todavia, as mulheres no Brasil estão sendo mortas. Apesar de estável, em comparação com 2018, o número é muito alto. Isto incomoda, porque estudos demonstram que após a edição da Lei do Feminicídio, em 2006, houve, no ano seguinte, um decréscimo, mas nos anos seguintes o número voltou a subir e se estabilizou no alto”, afirma.
Essa estabilidade, segundo ela, é muito ruim porque, apesar de tantas políticas de conscientização, como palestras, e do recrudescimento das punições, com a própria lei, as delegacias, as varas criadas na Justiça e o atendimento personalizado, a violência não cede.
“É uma espécie de afronta. A violência doméstica tem histórico no patriarcado, no machismo, no sentimento de posse que o homem tem em relação à mulher. Isso acaba desaguando na violência doméstica, porque a mulher está, hoje, mais empoderada, mais livre. Tem emprego, renda, começa a ter vontade própria e a dizer o que quer ser, e isso desencadeia a violência, porque boa parte dos companheiros não aceita”, explica.
Números são assustadores
A delegada diz que a violência doméstica é um conjunto de coisas que faz com que continue acontecendo e que, apesar de todas as medidas adotadas, como o endurecimento da lei, que deveria provocar a diminuição dos números, eles permanecem altos.
“É preciso melhorar e especializar ainda mais esse atendimento à vítima, desde a delegacia, no primeiro atendimento, passando pelo Judiciário e pelos órgãos auxiliares, para os quais se encaminham as mulheres para se submeterem a um atendimento psicológico e encaminhar o agressor para atendimentos também”, diz.
Jane Klebia diz que todo o sistema precisa estar mais presente na vida das mulheres. Mas nem sempre está. “A Lei Maria da Penha é considerada a mais conhecida do Brasil, mas quando a gente pergunta às pessoas qual o conteúdo dela, ninguém conhece. Isso é revelado por meio de estudos estatísticos. Apesar de ser uma lei muito boa, completa, que efetivamente traz a segurança, ainda assim as mulheres continuam morrendo”, constata.
Falta investimento em tecnologia A delegada diz que, para resolver isso, é preciso investimento do Estado em mecanismos mais modernos. “A tecnologia está aí ao alcance de qualquer celular. Por que nós não temos o número de telefone do pânico, com cobertura em todo o território nacional e associado à linha do celular? A mulher aciona ali e a polícia rapidamente vai prestar o atendimento, podendo evitar muitos crimes. Precisamos associar as duas leis à modernidade”.
Ela diz que outra providência é inserir nas escolas o conteúdo da violência doméstica. “Sou palestrante desse tema e tenho dado palestra nas escolas. Os jovens participam desses debates e gostam da discussão. Esses jovens serão os futuros companheiros e companheiras, agressores e agredidas. Precisamos que eles aprendam, desde pequenos, que mulher é igual, que tem de ser respeitada. A gente quer igualdade de direitos, de espaços em todos os campos da vida. O direito de sermos o que quisermos. Queremos preservar nosso poder de escolha”.
Falta dinheiro público e interesse político do Estado nesse campo da segurança. É preciso encarar isso como um problema muito sério, uma doença social. Tem gente que imagina que violência doméstica é conversa de mulherzinha. Esse problema não é coisa de mulher. É coisa da sociedade, dos homens, das mulheres, do Estado. É preciso entender que esse debate é muito importante e vai desde não fazer piadas sobre esse tema, como se fosse algo sem importância. Todo mundo acha graça, ri e não leva a sério o problema mortal da violência doméstica.
“Há mulheres que sequer sabem que a situação de violência em que ela vive é uma situação de violência. Há vários tipos de violência doméstica e agressão à mulher – física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Atlas da Violência mostra aumento de assassinatos
O Atlas da Violência 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em junho, mostra que o assassinato de mulheres no ambiente doméstico cresceu 17% de 2012 a 2017. No mesmo período, o assassinato de mulheres nas ruas caiu 3%.
Só em 2017 houve 13 assassinatos de mulheres por dia. A maioria negras. Elas representaram 66% das vítimas naquele ano. Mesmo depois de mais de uma década da aprovação da Lei Maria da Penha, e apesar da popularização do tema, os números mostram que a violência doméstica continua dentro das casas brasileiras.
Escolas – A violência doméstica atinge a todos, desde a vizinhança da vítima até a comunidade escolar da rede pública do DF. Um exemplo é um feminicídio que ocorreu no dia 27 de setembro, na Fercal. Uma estudante da Escola Classe Catingueiro teve de cancelar uma atividade pedagógica, que seria realizada no sábado (28), por causa do feminicídio da mãe de uma estudante.
“Tivemos de cancelar a atividade porque estamos de luto. A escola está transtornada, abalada, insegura, sem condições de realizar um evento festivo de valorização da atividade rural. A própria comunidade não está em condições emocionais. Todos estamos tristes com o feminicídio da mãe de uma de nossas estudantes”, afirma a professora Cleyse Coelho de Oliveira Alves. O crime afetou estudantes, professores e funcionários. Elaine Cristina Macedo, vice-diretora, afirma que a violência é um dos fatores que afetam as condições de trabalho de quem atua na educação e prejudica a qualidade de vida da categoria. Preparados para detectar crianças vítimas de violência doméstica, os professores da rede pública do DF acabam afetados e desgastados, psicologicamente, pela violência da comunidade que entra na escola por meio dos sofrimentos das crianças e adolescente.
Retrocesso nas políticas públicas
Uma pesquisa divulgada na quarta-feira (25) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que o Brasil retrocedeu na gestão de políticas para mulheres. Em cinco anos, caiu de 27,5% para 19,9% o percentual de municípios que possuíam um órgão executivo voltado exclusivamente para as mulheres, retornando ao patamar de 2009, que era de 18,7%.
A redução, segundo o estudo, está diretamente relacionada com as transformações na administração pública, iniciadas em 2015 e orientadas pela Emenda Constitucional 95/2016, que cortou investimentos do Estado em políticas públicas sociais e por princípios de eficiência.
“Nesse rol de transformações, foram extintas ou fundidas algumas estruturas estatais responsáveis pelas políticas para mulheres, igualdade racial, direitos humanos e juventude no âmbito da estrutura do Ministério da Justiça e/ou da Secretaria Geral da Presidência da República”, destacou.
Um dos efeitos imediatos dessas transformações, ressaltou o instituto, foi o corte de verbas. Levantamento do Ipea mostrou que, já em 2015, “a execução orçamentária da Secretaria de Políticas para as Mulheres sequer alcançou 30% do orçamento autorizado”.
Tais mudanças afetaram as estruturas municipais de gestão da política para mulheres de forma desigual, de acordo com o porte da cidade. Foi registrado aumento do número de organismos executivos entre municípios com mais de 500 mil habitantes. “Todas as demais classes de tamanho da população apresentaram redução no número de municípios com estrutura de gestão da política para mulheres”, ressaltou o IBGE.
A redução destes organismos foi mais acentuada em cidades com até 10 mil habitantes. A queda entre eles foi de 47% de 2013 para 2018. “Ainda é importante ressaltar que, dos 70% dos municípios brasileiros com população até 20 mil habitantes, somente 11% possuíam organismo executivo de política para mulheres em 2018, um número 43,7% menor do que o observado em 2013”, destacou.
Reforço – Em contrapartida à redução do número de municípios com organismo executivo voltado exclusivamente à política para mulheres, o IBGE apontou aumento, a nível estadual, da existência de um Plano de Política para mulheres. Em 2013, 12 estados o tinham, número que chegou a 15 em 2018 – aumento de 25%.
Já entre os municípios houve, no mesmo período, aumentou 9% o número de municípios que desenvolviam programa, projeto ou ação na área de políticas para as mulheres em cooperação ou convênio com outras instituições.
“A maior parte desses convênios e acordos de cooperação na área de políticas para mulheres foi firmada com outros municípios (79,6%), prática que se intensificou em comparação a 2013 (69,8%). Este percentual também é relevante nas parcerias firmadas com os governos estaduais (37,5%). Contudo, no tocante às parcerias com o governo federal (17,8%), verifica-se uma redução em relação a 2013, quando o valor era 30,8%”, destaca o IBGE.
Casas-abrigo – O IBGE chamou a atenção para o descumprimento da Lei Maria da Penha, que estabeleceu a necessidade de se criar espaços para abrigo e acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, batizados de casas-abrigo. Segundo o levantamento, apenas 2,4% dos municípios brasileiros contavam com essa estrutura em 2018.
“A situação se torna mais preocupante quando se verifica que, em 2013, este percentual era 2,5%, ou seja, não houve nenhum avanço desde então”, destaca o estudo. Nas casas-abrigo existentes, a principal atividade realizada foi o atendimento psicológico individual, presente em 74,5% desses locais. Em seguida, aparece o atendimento social acompanhado por assistente social que insira a mulher em programas sociais, e o atendimento na área de saúde ou encaminhamento da mulher para o serviço de saúde da rede pública – 69,3% das casas-abrigo os ofereceram.
Em contrapartida, apenas 19% dessas casas ofereciam o serviço de creche, “importante instrumento de emancipação feminina”, conforme enfatizou a pesquisa.
(*) Com informações da Folha de S. Paulo, G1 e outros