Única representante do PT de Brasília no Congresso, a deputada Erika Kokay é uma das vozes mais ativas no Parlamento contra o governo Jair Bolsonaro. Mas está impressionada com a voracidade com que o Planalto avança na retirada de direitos dos trabalhadores. “O que me dói é que o absurdo perdeu a modéstia”, diz ela, parafraseando Nelson Rodrigues.
“Nossa atuação mitiga o dano. Então, é lutar contra um governo misógino, fascista, LGBTfóbico, racista, e que assume isso e as pessoas batem palma. É um no governo pautado no próprio ódio”, afirma nesta entrevista ao Brasília Capital.
A petista faz um balanço do primeiro ano de Bolsonaro – “eles estavam testando permanentemente a força das instituições” – e promete aumentar a resistência às pautas ultraconservadoras ao longo de 2020.
“Os índios têm mais humanidade do que os milicianos, do que quem acha que é uma fraquejada ter uma filha mulher, ou que as mulheres precisam ser belas para merecem ser estupradas, como se fosse um prêmio. Os povos indígenas são a expressão completa do que é humanidade”.
Sobre as reformas propostas pelo Executivo, ela crava: “O governo está querendo lucrar com a miséria e a fome do povo brasileiro. Nós vamos impedir que o Brasil seja destruído e seu povo excluído do seu próprio espaço e do seu próprio território”.
Como que foi o enfrentamento da pauta do primeiro ano do governo Bolsonaro? – Acho que o governo se desnuda. Primeiro, fica muito clara a intenção de atacar os conjuntos dos direitos, de testar os limites e a força das nossas instituições. A todo tempo nós vimos o governo testar. Testar com a ode ao próprio fascismo, ameaçando um AI-5. Eles estavam testando permanentemente a força das instituições.
O que a oposição, como resistência, conseguiu evitar em termos de perdas para a sociedade? – Nossa resistência não se faz só na Câmara. Alguns projetos que nós mudamos, só conseguimos derrotar porque dialogamos, de forma muito intensa, com a sociedade organizada. E o governo sabe disso.
Se sabe, por que insiste? – Ele tem uma bula. Primeiro tem um discurso, que é permanente, de ataque aos direitos, trabalhistas e previdenciários. O Brasil não tem mais aposentadoria. Estamos vivenciando uma institucionalização da precarização. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi rasgada em milhares de pedaços. Nós perdemos conquistas históricas que nem a ditadura militar tentou ou ousou enfrentar.
Cite exemplos. – Nós temos hoje um nível de informalidade, de precariedade – a uberização – que nos lembra a sensatez do título do livro de Ricardo Antunes, onde ele diz que há o privilégio da servidão. É a uberização. Nem as relações de classe estão nítidas. Qual é a relação entre um trabalhador e um aplicativo? Quem é o patrão deste trabalhador?
Passado esse turbilhão, o que fazer para evitar que esse trator continue passando por cima de todos? – O turbilhão não passou. Ele está sendo pavimentado. O governo encaminhou 15 itens, como se fossem prioridades aqui no Parlamento, para este ano. São itens que não melhoram a vida do povo brasileiro. Um deles é a desestatização da Eletrobras. Eles vão persistir.
Mas não tem nada de positivo nas matérias aprovadas em 2019? – O governo foi incompetente, incapaz de conter o déficit fiscal, que é construído pela subserviência do governo ao capital financeiro. Aqueles que lucram fazendo dinheiro a partir do dinheiro. É um capitalismo dependente. É uma subserviência aos Estados Unidos de uma forma nunca vivenciada.
Mas o governo comemora como vitória, por exemplo, a entrada na OCDE… – A entrada a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) tira a condição diferenciada que o Brasil tem na Organização Mundial do Comércio (OMC). Ele abre mão desta condição e se submete à OCDE.
Num mundo globalizado, não é interessante a atração do capital internacional? – Agora o governo diz que vai abrir as compras governamentais para o capital internacional. Isso significa atacar o conteúdo nacional que gera emprego. O Brasil não vai abrir as suas compras para o capital internacional para participar dele. Vai ser engolido por ele. E sem geração de emprego, porque você não tem cadeias produtivas sendo desenvolvidas. Então você tem um capitalismo dependente e um capitalismo financeirizado, não produtivo.
Você citou a desestatização da Eletrobras. Mas existe a possibilidade de privatização de outras empresas, como a Caixa Econômica e o Banco do Brasil… – Bolsonaro diz que não vai privatizar a Caixa. Nós, inclusive, chamamos o presidente da Caixa aqui. O problema é que ele vai arrancar da Caixa o que ela tem de lucrativo. Ele quer privatizar as loterias, os cartões, os produtos, a carteira de gestão de recursos de terceiros. Então, vai privatizar aquilo que tem retorno e que fortalece a própria Caixa.
Os funcionários da Caixa estão fazendo uma campanha contra a privatização… – Eu penso que é preciso dialogar muito com a sociedade. O presidente do Banco do Brasil também esteve aqui. Nós o chamamos para prestar esclarecimentos e ele disse que a iniciativa privada é melhor do que o BB. Ora, o Banco do Brasil disputa mercado, assim como a Caixa, com a iniciativa privada. Como é possível o próprio presidente do banco dizer “meu concorrente é melhor do que eu”?
Tem ainda o papel social desses dois bancos públicos… – Sem dúvida. 98% da habitação de baixa renda é financiada pela Caixa. Então, nós estamos abrindo mão de instrumentos estratégicos para o desenvolvimento nacional. O governo alega que quer tentar conter um déficit fiscal que não é provocado por essas empresas. São empresas lucrativas.
E quanto à Petrobras? – Ao mesmo tempo que ele diz que não vai privatizar a Petrobras, está privatizando o Pré-Sal e já privatizou mais da metade das distribuidoras da Petrobras. O governo quer privatizar a Dataprev, que tem 3.600 funcionários, é uma empresa enxuta, que não depende, para a sua existência financeira, de recursos da União. A Dataprev detém a responsabilidade de mais de 34 milhões de benefícios pagos através da própria Dataprev. O governo está entregando um cadastro com os dados de milhões de pessoas para a iniciativa privada e internacional.
Pelas declarações do Presidente, outra prioridade é vender a ECT… – O governo disse que vai privatizar os Correios. Mas ele sabe – e o presidente dos Correios na época veio aqui e disse isso de forma muito clara e foi demitido uma semana depois – que o lucro dos Correios vem por volta de 8% dos municípios. A iniciativa privada não vai assumir o que dá prejuízo, vai assumir os 8%. O lucro dos Correios vem do setor que não é monopolizado, onde ele disputa, nas encomendas, e tem destaque, excelência. Então, a iniciativa de privatizar os Correios significa uma subserviência.
Também discute-se a privatização de empresas de saneamento… – Nós resistimos bastante ao projeto do marco do saneamento, que em verdade é um marco para privatizar. Ele impede, inclusive, que o município possa fazer convênios ou tenha serviços de saneamento prestados pelas empresas públicas estaduais. Então é uma privatização.
E quanto à necessidade de se expandir esses serviços de saneamento básico para uma parcela maior da população? – Não se faz isso submetendo esses serviços, que são fundamentais para a saúde e para o bem viver, para a iniciativa privada, que tem como visão o lucro. Nesse sentido, você tem uma pauta desestatizante, uma pauta econômica de retirada de direitos dos trabalhadores, tratados como os grandes vilões. Retiram os direitos dos trabalhadores como justificativa para fazer o país crescer. A própria Carteira Verde e Amarela, que está aqui na Câmara para ser apreciada, faz com que o desempregado pague para o jovens entrarem no mercado de trabalho. E os jovens também pagam por isso.
Está na pauta do governo a PEC Paralela, que prevê a fusão do Bolsa Família, do salário família, do abono salarial e a dedução por criança, criando o Benefício Universal Infantil (BUI). O que significa isso? – Primeiro, tem que se considerar que o Brasil volta a conviver com a fome. Tem também a diminuição das pessoas que são beneficiadas pelo Bolsa Família. O governo fala que considerara o 13º para o Bolsa Família. Entretanto, diminuiu o número de pessoas que têm direito ao benefício. Nós temos por volta de 2 milhões de processos de pessoas que buscam benefícios previdenciários ou sociais e que estão parados. O governo está querendo lucrar com a miséria e a fome do povo brasileiro.
A reforma da Previdência, tão comemorada pelo governo, não melhorou o sistema? – Ela tira o direito da aposentadoria de grande parte da população brasileira, com idade mínima que foi estabelecida, com um período de até 40 anos de contribuição para o trabalhador sair com a média 100% do salário que recebeu até o momento. Vamos tomar como exemplo de um gari. Ele tem uma expectativa de vida laboral de quantos anos correndo atrás de um caminhão? Como exigir que ele trabalhe até aos 65 anos? Quando chegar aos 50 anos, ou menos, ele vai começar a ter problemas de saúde e vai ser demitido. Então, ele estará novo para se aposentar e velho para entrar no mercado de trabalho. É muita crueldade!
Na sua visão, quais seriam as pautas prioritárias neste momento? – Nós temos uma prioridade fazer a discussão sobre o Fundeb, o financiamento da Educação Básica, que precisa ser validado. Queremos que ele entre na Constituição, porque se o prorrogarmos para depois deste ano, acabará o financiamento da educação.
E quanto ao Ensino Superior? – Outra tragédia. O governo está acabando com a autonomia das universidades, com a Medida Provisória que aqui está, que impede que a democratização da gestão.
Há alguma possibilidade de negociar com a base governista? – Este é um governo que dialoga com um segmento muito fascista. O Presidente elogiou um secretário Nacional de Cultura que pouco tempo depois fez uma apologia ao nazismo. Colocou na Fundação Palmares uma pessoa, que mesmo sendo negra, disse que a escravidão foi benéfica para os afrodescendentes. Substituindo aquele que fez apologia nítida ao nazismo, colocou uma pessoa que reproduz uma fala que diz que é preciso acabar com a luta de negros contra brancos e que os negros, a população LGBT, enfim, a população que luta por seus direitos, está se vitimizando e ameaçando. Ou seja, transforma as vítimas em algozes. Hitler fez isso, não fez?
Em outubro teremos eleições municipais, que é o primeiro momento em que a população vai poder dizer sim ou não a esse projeto. Como é que a esquerda pode começar a tentar reverter esse quadro já visando 2022? – Na verdade, a eleição de 2020 é em defesa das cidades, para que as cidades possam ser um local para todos. As cidades são proibidas para as pessoas com deficiência, para as mulheres. Ande em uma cidade de madrugada e você vai ver que as praças estão vazias. Todos os espaços coletivos tornaram-se proibidos para o seu próprio povo, até em função da ausência de uma política de mobilidade urbana, do aumento das passagens de ônibus. É como se a mobilidade urbana fosse submetida a um aprisionamento, escravização dos próprios corpos. Você possibilita muitas vezes, com mais facilidade, que uma pessoa saia de Ceilândia pro Plano Piloto para trabalhar do que se deslocar dentro da própria Ceilândia.
Mas, em termos eleitorais, quais as cidades consideradas estratégicas para o PT? – Em muitas cidades nós vamos buscar uma composição com a esquerda. Em São Paulo, temos diversos candidatos para disputar a prévia interna do partido. Temos discussões no Rio de Janeiro com o Freixo. Tentaremos fazer composições em Porto Alegre. Mas são coisas que ainda não estão decididas. São movimentos que estão sendo construídos também em outros locais.
Então o debate nas cidades será o ponto de partida para a discussão nacional que se dará em 2022… – É óbvio que o resultado das eleições municipais tem um impacto nas eleições federais, inclusive na eleição de parlamentares e governos estaduais.
Quais os temas, na sua avaliação, dominarão o debate em 2022? – Esse governo quer manter uma pauta fundamentalista contra os direitos, porque com essa pauta dialoga com o segmento ultraconservador que o elegeu, que ele quer manter. Se fosse diferente, não manteria caricaturas no Ministério dos Direitos Humanos, da Mulher, das Relações Exteriores, do Meio Ambiente e da Cultura. A mesma coisa os ruralistas. Veja o que fez o Conselho Nacional de Mineração. Está possibilitando que autorizações para exploração mineral, se o governo não se manifestar em determinado prazo, estejam automaticamente autorizadas.
E tem ainda a questão das terras indígenas… – É. Primeiro que é desumanização simbólica, quando ele diz que os indígenas não são seres humanos, que nós temos que lutar para que eles sejam seres humanos como nós. E eles são muitas vezes até mais. Eles têm mais humanidade que os milicianos, do que quem acha que é uma fraquejada você ter uma filha mulher, ou que as mulheres precisam ser belas para merecerem ser estupradas, como se fosse um prêmio. Os povos indígenas são a expressão completa do que é humanidade.
O que a oposição fará para tentar barrar essa tendência? –A oposição vai trabalhar com proposições. Temos uma proposta de reforma tributária que já foi lançada aqui e que será discutida. Vamos buscar enfrentar as desigualdades, que é um dos maiores problemas que o País tem. As desigualdades são regionais, são sociais e de direitos. Queremos construir uma trincheira contra as desigualdades. E olhe que nós resistimos. A nossa resistência tirou alguns pontos da reforma da previdência, outros do pacote anticrime, porque a maldade seria maior, mais profunda e mais cruel. Portanto, a nossa atuação mitiga o dano. Então, é lutar contra um governo misógino, fascista, LGBTfóbico, racista, e que assume isso.
Parece uma luta inglória… – O que me dói é que o absurdo perdeu a modéstia, usando um termo de Nelson Rodrigues. Ele se assume enquanto tal e as pessoas batem palma. É um no governo pautado no próprio ódio. Eu fico me perguntando se as pessoas realmente votaram em Bolsonaro por conta de suas propostas. Ele não disse quais seriam suas propostas para o País, para a Saúde, Educação. Ficaram na facada. Ele não chegou a dizer nada. Não houve debate. É um governo que se impõe muito mais sobre as fake News, que continuam.
Como assim? – Ele tem uma máquina subterrânea. E dessa condição subterrânea, as caricaturas saem e assumem postos chaves, como o Ministério da Educação. Que tem a ousadia de dizer que a Terra é plana. A ousadia de desconstruir e desprezar qualquer evidência científica, como se você pudesse criar uma pós-verdade sem nenhum tipo de lastro com os fatos, completamente construída.
Mas, em última análise, esta foi a escolha do povo… – Se você olhar a bancada bolsonarista na Câmara, grande parte dela não tinha vida política. As pessoas não conheciam esses deputados. Eles foram eleitos no discurso do ódio, pra enfrentar, pra acabar com a esquerda. Foi criada uma lógica do medo. Eles precisam sempre de inimigos imaginários. Ora são os professores, depois as universidades, os negros.
Como esse discurso se reproduz na sociedade? – O Brasil conviveu quase 400 anos com a escravidão, é o quinto no mundo em número de feminicídios, é um dos países que mais mata a população LGBT. No Brasil, a expectativa de vida da população trans chega a pouco mais de 30 anos. É uma distorção a construção de inimigos imaginários que sempre está aliada à construção de heróis imaginários. Uma história montada de heróis e vilões, para que a partir daí se possa arrancar os direitos, entregando o país e fazendo uma apartação da pauta econômica que destrói a possibilidade de termos um projeto de desenvolvimento que possa apontar para uma perspectiva do Brasil vivenciar a sua própria grandeza.
Mas a economia, segundo os analistas de dentro e de fora do governo, aponta para um crescimento… – A pauta econômica está blindada e imune a todos os absurdos que esse governo provoca do ponto de vista dos direitos, inclusive trabalhistas, a serviço do capital internacional, estadunidense. Nos Estados Unidos, as hidrelétricas são protegidas pelo exército. Na China, Canadá, EUA, que podem comprar e dominar a nossa Eletrobras, não abrem mão da sua soberania energética, não colocam à venda, muito menos entregam as suas empresas. No Brasil, está a serviço de (Donald) Trump (presidente dos Estados Unidos), de um projeto que é estadunidense, e não nacional. Então, nós vamos resistir a tudo isso. Eu tenho absoluta certeza de que a discussão com a sociedade e o enfrentamento das narrativas do próprio governo terão eco e a partir daí. Nós vamos impedir que o Brasil seja destruído e seu povo excluído do seu próprio espaço e do seu próprio território.