Aldemario Araújo Castro (*)
Escrevi, em 23 de novembro de 2022, um texto sob o título “A defesa da democracia exige energia” no qual sustentei: a) o principal responsável pela preservação da ordem constitucional brasileira na atualidade é o Supremo Tribunal Federal (art. 102 da Carta Magna de 1988) e b) o STF, por ação colegiada ou pela atuação de cada um dos seus integrantes, não somente pode, mas fundamentalmente deve, atuar com a energia necessária, nos limites e segundo os procedimentos da ordem jurídica, para assegurar sua existência, seu funcionamento e, por extensão, a democracia brasileira.
Disse, ainda, que a autodefesa do órgão de cúpula do Poder Judiciário, como instrumento de afirmação da institucionalidade democrática, é um dever-poder decorrente da cláusula constitucional expressa no aludido artigo 102 do Texto Maior. Pela teoria dos poderes implícitos, existem os meios necessários para a concretização das competências constitucionais, mesmo que aqueles não estejam escritos palavra por palavra. A linha de raciocínio e relações é bastante clara. Sem Supremo em pleno funcionamento, não há Constituição em vigor e efetiva. Sem Constituição em vigor e efetiva não existe democracia.
As tristes, inéditas, repugnantes e inaceitáveis cenas nas sedes dos três Poderes da República, observadas no dia 8 de janeiro 2023 colocam em outro patamar a necessidade de defesa do Estado Democrático de Direito, a formulação institucional mais elevada do regime democrático.
Invasão e depredação do patrimônio público, agressões físicas e até roubo são atos criminosos. Manifestações de pura e simples barbárie. Não possuem nenhuma relação, por menor que seja, com o exercício civilizado de direitos fundamentais de opinião, de oposição, de irresignação ou coisa parecida. Cumpre, observar, mesmo lateralmente, que não vivenciamos nada parecido com um contexto social e político em que fosse viável cogitar do exercício do direito de resistência.
Um capítulo especialmente preocupante é a constatação da leniência, para dizer o mínimo, das forças de segurança pública com os atos de extrema violência e a tentativa de obter uma ruptura democrática a partir da produção do caos e da baderna generalizada, começando por Brasília e se espraiando país afora em estradas, refinarias, linhas de transmissão de energia elétrica etc.
Tudo isso está fartamente documentado em inúmeras lives, fotos, vídeos e convocatórias em redes sociais. Será preciso, portanto, uma apuração criteriosa da ação, ou da falta de ação, das forças policiais do Distrito Federal, especialmente seus comandos e, inevitavelmente, do governador do DF. Numa perspectiva mais profunda, é preciso fazer um debate agudo acerca do modelo em vigor para conformar o funcionamento das corporações policiais e sua aderência ao regime democrático.
Nesse momento de espanto e revolta, não custa lembrar uma das decisões mais importantes do constituinte originário. Apontou, o legislador inicial, para além de qualquer dúvida, a necessidade imperiosa de defesa da ordem constitucional e a qualificação da máxima gravidade dos atentados contra o regime democrático ao dispor no artigo 5º, inciso XLIV, da Constituição: “Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Nessa linha, o Código Penal foi alterado pela Lei nº 14.197, de 2021, para prever os crimes de “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (artigo 359-L); e de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” (artigo 359-M).
É preciso afirmar e reafirmar que a força da atuação das instituições estatais em sua própria defesa e no resguardo do regime democrático terá relação direta com a forma e intensidade dos agravos. É viável afirmar, com viés político e jurídico, que a legítima defesa da democracia é lícita quando lança mão dos meios e da energia necessária para repelir a agressão injusta de forma eficiente.
Diante de afrontas sérias, organizadas e violentas contra a democracia, não é aceitável uma ação leniente, frouxa ou que permita avançar os golpismos de todos os gêneros. Uma postura firme e decidida (que não deve ser confundida com autoritarismo) é uma exigência democrática e fundada na Constituição.
A falta de unidade e intensidade na disposição de defesa das instituições democráticas transforma as cogitações golpistas em ações golpistas e, logo depois, as tentativas golpistas em sucessos golpistas. Nesse sentido, merecem elogios a criação, pela Advocacia-Geral da União (AGU), instituição de Estado, da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia. As preocupações com a possibilidade de censura e outros desvirtuamentos não fazem sentido diante da tradição profundamente democrática e republicana dos atuais dirigentes do órgão e dos integrantes de suas carreiras jurídicas.
Numa sociedade sob o império da juridicidade, legalidade e constitucionalidade, como o Brasil dos dias atuais, não é viável fazer o que se bem quer e entende diante de insatisfações e contrariedades, eleitorais ou de qualquer outra natureza. Nessas hipóteses, devem ser manejados os instrumentos previstos no ordenamento jurídico e realizada a ação política pertinente nos limites da civilidade.
Na vida e na política é preciso aprender a ganhar e perder e, na sequência, assumir de forma civilizada cada uma dessas condições. É definitivamente inaceitável impor, pela força e violência física, opções políticas e toda sorte de preferências pessoais. Por conseguinte, é dever de cada cidadão, autoridade ou órgão estatal a defesa coesa e enérgica do Estado Democrático de Direito, tal como plasmado na Constituição de 1988.
É rigorosamente impensável o regresso ao estado de barbárie, materializado em violências de todas as ordens, notadamente quando estimulado e patrocinado por empresários descomprometidos com o interesse público, perdedores inconformados com resultados eleitorais, indivíduos delirantes e até por (algumas) graduadas autoridades constituídas.
Revela-se, portanto, completamente apropriada a famosa advertência de Karl Popper. Até que ponto a democracia, para autopreservar-se, deve tolerar os intolerantes? Afinal, “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da própria tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
(*) Advogado Mestre em Direito Procurador da Fazenda Nacional