Os médicos não são imunes às consequências da pandemia da covid-19. Eles estão entre as categorias profissionais mais expostas e, atendendo na iniciativa privada ou por convênio com plano de saúde, são também afetados no campo econômico. Até na prestação de serviço aos governos, em muitos casos, não estão cobertos por nenhum tipo de garantia trabalhista quando são contratados como pessoas jurídicas. É um reflexo perverso de outra doença que aflige algumas categorias profissionais: a pejotização – contratação de profissional como pessoa jurídica para evitar vínculo trabalhista, com redução de encargos sociais e carga tributária para o empregador.
Reiteradas vezes, a Receita Federal se manifestou contrária e age para coibir esse tipo de relação de prestação de serviço, pois ela mascararia uma relação que é de emprego. Contraditoriamente, esse modelo de contratação foi estimulado pelo Estado por meio da Lei 11.196/2005, que, no artigo 129, viabilizou esse tipo de relação de prestação de serviços, que se tornou prática corrente no mercado de trabalho médico. Por conseguinte, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a terceirização de atividades fim.
Se a pejotização existe e foi incentivada pelo governo no passado, revela-se um descompasso em relação à interpretação da Receita, que pune os médicos, os quais são pressionados a aceitar esse modelo de relação de trabalho. É preciso garantir que as empresas e o próprio Estado estão respeitando a legislação, pois são eles e não os médicos que determinam as condições de contratação.
Agora, no auge da pandemia do novo coronavírus, a pejotização mostra sua face mais cruel, pois o médico, contratado como pessoa jurídica é chamado à frente de combate ao novo coronavírus sem as garantias que se tem na condição de empregado.
Vejam: Como pessoa jurídica, o contrato é de prestação de serviço. Se o profissional adoece em serviço, o problema é dele, porque o empregador o substitui. Ele fica doente e sem renda, ou restrito a um benefício da Previdência, que não chega perto do seu rendimento. No DF, a própria SES-DF aponta que 14% dos infectados são profissionais de saúde.
No Rio de Janeiro, segundo a sanitarista Ligia Bahia, cerca de 40% dos médicos que atuam no serviço público o fazem por meio de contrato de pessoa jurídica com as Organizações Sociais de Saúde (OSs), a quem o Estado terceirizou a assistência à saúde da população.
Outra dificuldade se impõe ao profissional da medicina que não tem relação de emprego direto: A recém-editada Medida Provisória 936/20, que determina o pagamento da prestação de serviço por pessoa jurídica pode ser suspensa ou postergada.
O risco envolvido na jornada de trabalho, em especial durante esta pandemia, é justamente o que aponta a necessidade de haver um compromisso de via dupla entre os profissionais e os governos que prestam assistência. Se são necessários (e são) agora mais do que nunca, deveriam, justamente por isso, ser contratados com todos os direitos e garantias trabalhistas. Explorar a atividade médica, sem dar garantias aos profissionais da área, não pode ser uma opção.