As vozes de centenas de milhares de cidadãos que, nas últimas semanas, têm ocupado com frequência praças e ruas de capitais e cidades de vários países, em diversos continentes, soam como um imenso coral que canta as virtudes da liberdade e expressa coletivos desejos de preservação e aperfeiçoamento da democracia.
Não se trata de fenômeno político de origem muito antiga, nem também muito recente. É o que nos leva a pensar o historiador francês Michel Winock, em Les voix de la liberté (As vozes da liberdade), tempos atrás publicado aqui pela editora Bertrand Brasil, em tradução de Eloá Jacobina. Trata-se de um livro que, apesar de suas várias centenas de páginas, conquista o leitor com a qualidade de sua construção histórica e a notável transparência de sua linguagem.
Winock nos leva de volta a 1830, data crucial na moderna história política da França. Como sabe o leitor, a Revolução Francesa, iniciada em 1789, derrubou o Ancien Régime (em cujas vísceras havia muitos restos de medievalismo), instaurou a república e assentou os pilares da democracia.
Mas, antes de completar-se, a Revolução foi sequestrada por Napoleão Bonaparte, que trouxe de volta o absolutismo. Depois de esgotar a nação com uma série de guerras, Napoleão foi, finalmente, derrotado em 1815, abrindo-se então o caminho para a volta da república. Que foi imperfeitamente percorrido, tanto que em 1830 a França voltava a ter um rei e a democracia era adiada sine die. Mas muitos franceses não aceitaram o retrocesso. Foram para as ruas, e, graças aos seus clamores, começou nova e prolongada etapa de reconstrução democrática.
O balanço dos movimentos contrários à volta da monarquia evidenciou a importância de dois grupos, até então mal avaliados. Primeiro, o dos trabalhadores, que se conscientizavam de sua nada confortável situação. Mais inesperado, o dos intelectuais, agora prontos para a luta democrática. E, inicialmente, quase inconcebível, o das mulheres, cuja consciência, havia séculos, permanecia em estado fetal, envolvida pelo manto escuro da ignorância e impedido de crescer pelo peso dos preconceitos, sociais e religiosos.
Mesmo assim, o que ocorreu na França, a partir de 1830, quando a república cedeu, provisoriamente, à força do império renascente, foi uma espécie de “terremoto histórico”, representado pela inesperada reação dos mencionados grupos sociais que em parte haviam passado ao largo da Grande Mudança e aparentemente ignorado a frieza sanguinária de Napoleão, que, conforme calcularam historiadores, havia causado, no decorrer das muitas guerras de que participara, morte de um homem a cada três segundos de sua existência.
Cidades se tornaram palco das manifestações do grupo dos intelectuais, pequeno, porém, formado por figuras conhecidas e admiradas, como as de Balzac, Dumas, Lamartine, Michelet, Musset, Stendhal, Victor Hugo. Raras no início, as mulheres também começaram a revelar-se. Um caso particularmente notável foi o de Flora Tristan, que passou a perna em Karl Marx, no tocante ao conhecimento daquela parte do povo que seria identificado como a classe operária.
Marx vivia na Inglaterra, graças às mesadas de sua família alemã. Estudava as obras dos historiadores e grandes economistas ingleses, em especial os mais recentemente revelados. Acrescentando um tanto das ideias deles às suas, montava a teoria da superação do capitalismo e criação de uma sociedade liderada pela classe operária.
Sua primeira e memorável manifestação sobre o assunto foi a publicação do Manifesto, em 1848. Mas, até hoje, a maioria dos leitores ignora que, já em 1842, após longa pesquisa, que incluíra numerosas visitas a fábricas, prisões e outros lugares desagradáveis, Flora publicara Promenades dans Londres (Passeios por Londres), obra em que descreve a dura situação da classe operária na Inglaterra. Ao contrário do esperado, o livro entusiasmou a imprensa popular da época.
As histórias de Flora e outras mulheres que, na época, foram capazes de tornar visíveis seus talentos e sua disposição para integrar o Grande Coral da Liberdade, ocupam nobres espaços, parte considerável das 868 páginas do livro de Winock. Vale a pena conhecê-las.