Por Isabela de Oliveira do Portal Extrapauta
Um carro de Tiago Moreira dos Santos, Gerente de Ações Educativas do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF), acumula mais de 30 infrações desde 2014. Pelas infrações, o total de pontos seria: em 2014, 27 pontos; 13 pontos em 2015; 23 pontos em 2016; e 19 pontos até dezembro de 2017. Mas, apesar disso, Tiago, na gerência desde fevereiro deste ano, registra apenas quatro pontos no prontuário de sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH). O servidor também conseguiu entrar com recursos contra infrações cujo prazo de questionamento já tinha expirado há meses. As explicações, tanto de Tiago quanto do diretor-geral do Detran, Silvain Fonseca, vão desde que o carro não está mais no nome de Tiago — a reportagem descobriu que o veículo pertence, atualmente, à esposa do servidor e que ela também não tem pontos em sua CNH — , clonagem a até a uma possível manipulação de dados na rede interna do Detran motivada por vingança, segundo argumentou o próprio Silvain Fonseca em entrevista ao portal Extrapauta.
Conforme denúncia recebida pelo Extrapauta, o veículo i30 placa JHQ8521 possui 32 multas e notificações de autuação desde 2014, quando passou à propriedade de Tiago. Apesar de ter recebido muito tempo para se organizar para uma entrevista — o primeiro contato com a assessoria de imprensa via e-mail ocorreu em 16 de novembro — Tiago jamais conversou com a reportagem, a não ser quando foi contatado desprevenido, por telefone, em 28 do mês passado. Ele negou a propriedade do carro e alegou suspeita de clonagem do Hyundai, cujo condutor, inclusive, cometeu outra infração após o início da reportagem: às 17:33 de 27 de novembro o veículo foi flagrado pelo Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF) trafegando acima da velocidade permitida na EPNB.
Se a defesa de Tiago estiver correta, o carro clonado desde 2014 continua circulando pelo DF impune. Porém, ao ser questionado pelo Extrapauta, o servidor não apresentou provas de registro de clonagem do veículo como, por exemplo, um boletim de ocorrência homologado pela Polícia Civil. O diretor-geral do Detran também foi na mesma direção, mas igualmente não apresentou documentos que corroborem tal hipótese. Silvain Fonseca levantou, inclusive, a teoria de que as multas nunca chegaram à residência de Tiago, impedindo a regularização.
O sistema do Detran não acusa irregularidades como clonagem. A situação também está normal no Sinesp Cidadão, módulo do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas do Governo Federal. Para checar uma terceira vez, o Extrapauta fez um levantamento particular da situação do Hyundai i30 que, novamente, apareceu com a ficha limpa. O próprio site do Dertran-DF instrui sobre os procedimentos necessários em caso de clonagem.
Silvain Fonseca disse em entrevista gravada à reportagem que as multas podem ter sido forjadas por manipulação dos dados internos da autarquia por funcionários insatisfeitos com a eficiência da atual Direção de Educação no Trânsito (Direduc). “Nós estamos olhando se o carro foi clonado e se não tem aqui dentro do Detran alguém que está fazendo alguma coisa para prejudicá-los [Tiago e outros outros chefes da Direduc]”, argumentou o diretor-geral, levantando a hipótese de manipulação maliciosa dos registros por parte dos servidores que chefia. O motivo: “estou falando que alguém está incomodado e não quer trabalhar porque a educação no Detran vem trabalhando muito”.
Indagado sobre a vulnerabilidade do sistema de ser manipulado por qualquer servidor, o Diretor de Tecnologia da Informação e Comunicação (DIRTEC) do Detran, Reynaldo Baggio, via assessoria de imprensa, assegurou que o sistema do órgão é seguro contra violações. Também pela assessoria de imprensa, o corregedor Natt Douglas Corrêa disse que não existem investigações de adição de multas inexistentes aos prontuários dos cidadãos, o que faz da situação de Tiago, segundo as suspeitas do diretor-geral, uma exceção não documentada.
Datas em que foram cometidas infrações e adquiridos pontos na habilitação do condutor do Hyundai i3, exceto infrações em efeito suspensivo:
2014
23/02 – 4 pontos
10/03 – 4 pontos
23/03 – 4 pontos
27/03 – 3 pontos
25/05 – 4 pontos
20/06 – 3 pontos
12/09 – 5 pontos
2015
08/01 – 4 pontos
15/02 – 5 pontos
24/04 – 4 pontos
2016
05/01 – 7 pontos
27/03 – 4 pontos
25/07 – 4 pontos
04/08 – 4 pontos
02/10 – 4 pontos
2017
10/03 – 7 pontos
11/03 – 4 pontos
13/08 – 4 pontos
02/09 – 4 pontos
Fonte: Gestão de Trânsito (Getran)/Detran-DF consultados em 28/09/2017
Por telefone, Tiago disse que não tomou providências sobre as multas antes por estar ocupado demais com as atividades da gestão de Ações Educativas. “Foram acumulando algumas coisas e por conta de me dedicar muito ao trabalho, muitas dessas coisas eu não consegui resolver em tempo”, afirmou, dizendo que já não é mais proprietário do carro, hoje em posse de sua esposa. Apesar de possui 32 ocorrências desde 2014 (contando oito em efeito suspensivo), ano em que os impostos e tributos do i30 começaram a ser lançados em nome do servidor público, Tiago possui somente quatro pontos em sua CNH. A esposa, que também conduz o veículo, não possui um ponto sequer.
Os pontos têm validade de 12 meses, conforme no primeiro parágrafo do artigo 261 Código de Trânsito (CTB) [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503.htm] . O direito de dirigir é suspenso quando o condutor atinge 20 pontos em um ano. A contagem começa, segundo a Deliberação Nº 163 de 31/10/2017, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), a partir da data da infração [https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=352074 ].
Entre as infrações cometidas no i30 há utilização do telefone enquanto dirige; trafegar pela faixa exclusiva; estacionamento irregular; e excesso de velocidade. Não há recursos contra as faltas listadas nesta reportagem pelo Extrapauta, segundo o sistema do Detran, o que significa que pelo menos parte da pontuação deveria constar nas carteiras de habilitação de Tiago ou de sua companheira.
Privilégio
Das mais de 30 infrações vinculadas ao Hyundai i30 desde 2014, somente oito estão sendo analisadas pela Junta Administrativa de Recurso de Infrações — Jari em dois processos separados cujo autor é o próprio Tiago, que não é mais, segundo ele mesmo, o proprietário e principal condutor do veículo. As infrações estão sob efeito suspensivo, instrumento que garante que enquanto a multa estiver pendente de julgamento ela não pode ser cobrada e nem gerar pontos na carteira.
Apesar de as infrações contestadas no recurso terem sido cometidas em 2015 e 2016, a data de abertura dos processos é 20 de abril de 2017. A multa mais recente contestada é de 1º de outubro do ano passado. Via assessoria de imprensa, Thayse Alves Araújo, Secretária Executiva das Jari’s, explicou que existem três prazos de questionamentos:
— Para interposição de defesa prévia e/ou indicação de condutor infrator constará da notificação de autuação e não será inferior a 45 dias da data da infração.
— O prazo que prevê o recurso à Jari, segundo o art. 282 § 4º do CTB, será o vencimento da multa.
— O prazo para recurso junto ao Contrandife é de 30 dias a contar do recebimento da carta de informação do julgamento da Jari.
Desculpas
Álvaro Sebastião Teixeira Ribeiro, diretor dor Direduc e chefe de Tiago, estava ciente das multas quando convidou o servidor para o cargo de gerente. “Quando o Tiago foi convidado por mim para o cargo ele me falou que tinha umas multas e que achava que o carro tinha sido clonado. E que ele iria averiguar isso naquele período anterior. Antes disso aí [a denúncia] ele já estava preocupado com isso. Com o trabalho que ele desenvolve, que é de segunda a domingo, ele não teve tempo”, contestou.
Durante entrevista, Silvain Fonseca considerou as denúncias contra Tiago, o ingresso tardio de recursos e pontuação inexistente na habitação do servidor e de sua esposa o menor dos problemas. O vazamento de registros do próprio Detran que questionam a conduta de um funcionário cuja missão é educar, inclusive pelo exemplo, foi o pior. Para ele, uma coisa é o que se faz na vida privada. Outra, o exercício da função.
Mas o Código de Ética dos Servidores e Empregados Públicos Civis do Poder Executivo, decretado em 29 de abril de 2016 pelo governador Rodrigo Rollemberg [http://www.brasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2016/07/C%C3%B3digo-de-%C3%89tica-dos-Servidores-e-Empregados-P%C3%BAblicos-Civis-do-Poder-Executivo.pdf ], não faz distinção.
Art. 3º Aos servidores e empregados públicos impõe-se atuação profissional condizente com o cargo e a busca permanente do interesse público e do bem comum, observando em sua função ou fora dela, a dignidade, o decoro, o zelo e os princípios morais em busca da excelência profissional, ciente de que seus atos, comportamentos e atitudes implicam diretamente na preservação da imagem da Administração Pública.
O manual reprova também as “vistas grossas” que autoridades possam fazer para descaminhos éticos e morais no serviço público.
Art. 15. Dentre as vedações, a autoridade pública não pode:
I – utilizar-se de cargo, emprego ou função, de facilidades, amizades, posições e influências, para obter favorecimento, para si ou para outrem em qualquer órgão e/ou entidade públicos;
III - ser conivente com erro ou infração a este Código;
IV - usar de artifícios para procrastinar ou dificultar o exercício regular de direito por qualquer pessoa;
V - faltar com a verdade com pessoa que necessite do atendimento em serviços públicos;
Durante todo período de apuração da reportagem, o Detran minimizou as acusações, apesar de o diretor-geral do órgão garantir que investigações estão sendo conduzidas para apurar os fatos. Silvain Fonseca não especificou, contudo, a natureza dos procedimentos e nem sequer exibiu documentos que comprovassem a existência deles, o que daria à população a certeza de que os servidores de carreira da autarquia são tratados com a mesma severidade que os cidadãos. Pode ser que o Detran lide com seus assuntos internos assim como o ferreiro do ditado: ferro fora de casa. Dentro, só espeto de pau.