Na década de 1920, a capital egípcia era cortada por grandes avenidas, boulevares, bondes elétricos, calçadões, cafés. Vida bucólica à margem do rio Nilo. Apesar de ser uma zona desértica, o verde se fazia presente, graças ao rio que a atravessa.
Um século depois, a “Paris da África” se transformou em algo abominável, a ponto de a única solução encontrada pelo governo ter sido a construção de uma nova capital, como mostramos na semana passada.
Mau exemplo
O planeta está cheio de bons e maus exemplos de práticas de planejamento urbano. Todas são úteis para momentos como o que vivemos em Brasília, com a elaboração de uma nova Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) e de um novo Plano de Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot).
Dentre as experiências urbanas alhures, a do Cairo é uma que pode nos ensinar a evitar determinadas iniciativas. A opção governamental foi investir em viadutos, elevados, autopistas. Privilegiou-se o transporte individual, deixou-se de lado as soluções de mobilidade urbana.
Vespeiro de vans
Lá, praticamente, não há transporte coletivo em ônibus. Um vespeiro de lotações domina a cidade. É difícil saber como os passageiros se orientam, pois essas vans – muitas importadas de segunda-mão de países europeus – não possuem numeração, identificação de destino ou itinerário.
Também não há na cidade paradas de ônibus demarcadas. Em qualquer esquina, as lotações pegam ou deixam passageiros. Não há linhas de VLT – os bondes elétricos. O metrô do Cairo data da década de 1980 e é o mais antigo de toda a África.
São três linhas, que formam uma rede de 88,5 quilômetros, por onde passam 2,5 milhões de passageiros/dia, o que representa apenas 10% da população da megalópole formada pela conurbação Cairo, Gizé e Shubra El-Kheima. Até 2050, deve passar dos 40 milhões.
Moradias no quintal do sítio arqueológico
A expansão urbana é tão violenta que as moradias e estabelecimentos comerciais chegam ao quintal do sitio arqueológico das Pirâmides de Gizé. Nas ruas do Cairo não há semáforos. Faixa de pedestre é uma utopia. Cada um por si. Todos se enfiando onde couber, ignorando as faixas de circulação. O som das buzinas é constante.
Apesar da intenção de ampliar as linhas do metrô, o governo do Egito investe em mais viadutos, elevados, autopistas e anéis rodoviários.
Derrubada de casas
No Egito, como não há espaço para novas vias, a solução foi derrubar casas e até bairros inteiros. Alguns dos elevados ficam a menos de um metro de distância de prédios que restaram em pé. Dependendo da localidade, no quinto ou sexto andar de alguns edifícios, o cidadão poderá abrir a janela e saltar sobre a autopista que formará o novo anel viário do Cairo. É como se a Via Epia passasse a contar com cinco faixas de cada lado e para isso, prédios no Cruzeiro tivessem que ser demolidos.
Pontos em comum
Para Adriana Modesto, doutora em Transportes, embora distantes no tempo e no espaço, o Cairo e Brasília experimentam pontos em comum: as prioridades de seus gestores quando o assunto é planejamento de transportes e planejamento de circulação. “Priorizam recursos à infraestrutura para o transporte motorizado, rodoviário. Um e outro governo se alinham na contramão de políticas globais, como a Agenda 2030, proclamada pela ONU”, exemplifica.
Conurbação
Toda essa transformação egípcia se deu em um século. Brasília tem 61 anos e mais de três milhões de habitantes (4,5 milhões, se computadas as cidades do Entorno). A conurbação no Planalto Central avança a passos largos em diversas direções.