No ano pretérito, Brasília tornou-se sexagenária, sem festas e tampouco aplausos, em face da pandemia da covid-19, que assolou o mundo. Prevista desde a primeira Constituição da República e inaugurada sob o manto de JK, a capital traçada por Lúcio Costa e moldada por Niemeyer traz uma sombra não vista aos olhos probos, mas sentida no coração pela maioria dos que ajudaram a edificá-la e hoje a habitam – o preconceito racial.
Pela forma como foi erguida, a cidade assimilou hábitos e imperfeições adquiridos simetricamente à História brasileira. Apesar de possuir um índice de desenvolvimento humano considerado muito alto, é explícita a má distribuição de renda e a fixação do negro nas camadas menos abastadas.
Minha genitora, pioneira e apaixonada pelo quadradinho, dizia: Era tudo mato! A cidade precisava crescer e parte dos candangos que aqui labutaram eram afrodescentes, os quais migraram às terras até então não povoadas em busca de melhores condições de vida. Muitos dos que sangraram suas mãos, alavancaram suas vidas em outras profissões e fizeram desta capital um distrito até então sem identidade, símbolo do ecletismo de diferentes regiões do País. Entretanto, a estratificação social vivida no Planalto Central não destoou dos demais cantões brasileiros.
Negro, filho de maranhenses semianalfabetos, aqui cheguei em 1970 e, segundo os meus irmãos, uma cegonha me arremessou. Naquele dia, eu me assustava no colo da minha mãe, pois Rivellino marcava pela Seleção Canarinho e fogos eclodiam pelo céu.
Filho de um servidor público, passei a ser singular até mesmo em escolas públicas que frequentei e, para conviver, experimentei um espectro de alcunhas que me constrangiam e inferiorizavam: negrinho, fumê, feijão, adjetivos que tive que assumir para uma aceitação social. Mas não me quedei – sobrevivi.
Brinquei de pique-esconde, malhei o Judas, assisti Legião, Plebe Rude e Alma Djam. Lutei com Ezequiel, joguei com Amoroso, estudei na UnB e escolhi cargos públicos. Mas sempre me foi exigido mais. Recentemente, já aos 50, grisalho e calvo, tornei-me macaco diante de um alucinado, o qual se sentiu ameaçado diante da minha aproximação. Lamentável e reprovável.
Nossa cidade aproxima-se dos três milhões de habitantes, dos quais 57,6% são negros. Dos jovens de 20 a 29 anos, 61,8% declararam-se afrodescentes. As regiões administrativas com menor concentração de renda são constituídas, em sua maioria por negros (63,9%).
Não vivemos bem. A cidade rascunhada por Oscar divide-se em castas e o racismo permeia em todas as classes sociais. A diminuta ascensão social faz com que os afrodescendentes sejam aceitáveis em delimitados nichos. E só. Quando se compara, o negro é afrontado e subjugado, não por suas ideias e valores, mas pelo tom de sua pele.
Sou descendente de escravizados e não de escravos. Meus antepassados tinham suas profissões no continente até então não explorado. Reis, artesãos, vaqueiros e muitos outros ofícios que lhes davam dignidade. Nenhum destes se conformava com essa situação de submissão. E foram retirados de suas terras, subtraídos de suas vidas e submetidos às masmorras em face de uma dominação cultural covarde e mesquinha em que foram arremessados às margens de nossa sociedade.
O desafio é a igualdade. Não a que está escrita, mas a material, merecida, em que se respeitem principalmente os desiguais. Comparar negros e brancos é iniciar uma partida com um time que sempre jogou com outro que acabou de entrar em campo, sem técnico, uniforme ou esquema tático, mas que tem que marcar gols.
Após mais de um século pós-escravidão, ainda reivindicamos direitos básicos, como uma educação de qualidade, saúde, saneamento básico e reconhecimento que nos conduzam a melhores condições de vida social e profissional.
O racismo em voga é estrutural, está enraizado e estabelecido para se manter o status quo vigente e a imobilidade social. Se Brasília curvou-se diante das milhares de mortes causadas pelo SARS COV 2, também se poderia ressignificar os óbitos e condições vexatórias que parte da população afrodescendente assimila em solo candango.
Se rogamos por uma imunização contra o vírus, também imploramos por extirpar qualquer forma de preconceito.
Viver em sociedade requer tolerância, resiliência, empatia e transformação, o que permitirá com que povos de diferentes raças, religiões e gêneros possam conviver pacificamente, na medida que se desigualam.
Parafraseando Daniela Mercury, o canto desta cidade também é nosso.
(*) Delegado de Polícia do DF e professor de Educação Física