Orlando Pontes e Tácido Rodrigues
Em entrevista ao Brasília Capital, a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, alerta que o projeto de lei que afrouxa regras de licenciamento ambiental, aprovado na Câmara dos Deputados, representa a volta “a um estágio de descontrole ambiental”. “Podemos reviver a época em que Cubatão (SP) era chamado de ‘Vale da Morte’, onde crianças nasciam anencéfalas porque as mães estavam contaminadas por poluição industrial”, afirma a presidente do Ibama no governo Michel Temer. “O Congresso trouxe esse retrocesso, mas o presidente Lula teve uma atuação aquém do necessário para barrar a proposta”. Para ela, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, deveria ter mais espaço na atual gestão.
O que o projeto de licenciamento aprovado no Congresso representa de retrocesso na política ambiental do país? – A institucionalização da Política Nacional do Meio Ambiente veio com uma lei de 1981, no final da ditadura militar, mas é uma lei consistente do ponto de vista técnico da proteção do meio ambiente. Ela criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), composto pelos órgãos federais, estaduais e municipais que atuam nessa área, e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), colegiado que tem uma importância enorme na produção infralegal da legislação ambiental. Essa norma também sinalizou a licença ambiental no país como um todo. É onde nós estamos até hoje. Então, a avaliação do Observatório do Clima é de que, após a institucionalização do Sistema Nacional do Meio Ambiente, não houve, até este projeto aprovado no Congresso Nacional, um ataque tão forte, tão doloroso, com tantos retrocessos.
Foto: Paulo de Araújo/MMAEm novembro, o Brasil receberá a COP-30, em Belém. Esta proposta de licenciamento ambiental muda a posição do país no cenário global? – Sem dúvidas. Essa aprovação com certeza fragiliza a posição internacional do Brasil na perspectiva de liderança. Até porque o presidente Lula defende que nós temos que liderar pelo exemplo. E a aprovação de uma lei com tantos retrocessos é um risco para as aspirações brasileiras de se mostrar ao mundo como um país verdadeiramente sustentável, com políticas públicas de proteção que alavanquem o potencial enorme na bioeconomia. A licença ambiental, sob o ponto de vista de investimentos estrangeiros e segurança jurídica no Brasil, é o principal instrumento para a prevenção de danos. O procedimento burocrático em si é o licenciamento, mas a avaliação de impactos ambientais que se faz, outra etapa do processo, é o que realmente importa. E a lei que se aprovou no Legislativo está implodindo tudo. Não sabemos ainda a repercussão que isso terá, mas o Brasil está retrocedendo muito fortemente em termos de controle ambiental. Não vejo culpa do presidente Lula. O Congresso é que trouxe esse retrocesso. Mas o Executivo atuou, na minha opinião, com um empenho aquém do necessário para barrar isso. O governo demorou para entender a gravidade.
A ministra Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, virou uma voz isolada dentro do governo Lula? – A ministra deveria ter mais espaço no governo. Ela tem parceria, por exemplo, com o ministro Fernando Haddad [da Fazenda], que está liderando grandes esforços de captação de recursos para o Fundo Clima, de regulamentação da lei do mercado de carbono. Também tem parcerias com os ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e dos Povos Indígenas. Então, não há isolamento pleno. Mas, de fato, a ministra deveria ter mais força no governo como um todo. As divergências entre o Ministério do Meio Ambiente e a área de infraestrutura são históricas, mas neste governo a cisão está bem clara. Há necessidade de uma maior articulação e de cumprimento das promessas do presidente Lula, feitas quando ele foi eleito. Ele iniciou o governo com uma série de promessas no campo da política ambiental. E nós temos que cobrar. Algumas foram, sim, observadas, caso do controle do desmatamento, que está mais intenso. Temos mais recursos no Fundo Clima, mas temos também conflitos. Por exemplo, a proposta de explorar petróleo na Foz do Amazonas, em plena crise climática, é contraditória. Outra questão é a tentativa de viabilizar o asfaltamento do trecho do meio da BR-319, obra que vai multiplicar o desmatamento no estado do Amazonas. Portanto, há divergências que precisam ser debatidas, mas não dá para falar que é só a ministra Marina contra o restante do governo. É mais complexo do que isso.
Quais pontos da lei de licenciamento são inconstitucionais? – A lei, na maior parte dos seus dispositivos, tem inconstitucionalidades. Se retirarmos tudo que é inconstitucional ou que agride a política nacional do meio ambiente, sobra muito pouca coisa. Sobra, por exemplo, o conteúdo do EIA (Estudo de Impacto Ambiental)/RIMA (Relatório de Impacto Ambiental), instrumentos cruciais para a avaliação de impactos ambientais de atividades potencialmente poluidoras ou degradadoras. Mas esse conteúdo é baseado numa resolução do Conama. É quase cópia. Então, quando eliminamos os problemas graves jurídicos e técnicos, a lei implode.
Pode citar alguns desses problemas? – Um deles é a opção por um número extenso de isenções de licença, mesmo no caso de empreendimentos impactantes, e com redações genéricas, como ‘melhoramento de infraestruturas pré-existentes não têm licença’. Isso pode dizer qualquer coisa, desde um bueiro numa rodovia ao asfaltamento do trecho da BR-319, que vai explodir o desmatamento na Amazônia. Eles estabelecem isenções de licenças bastante problemáticas, mas o que chama mais atenção é a força que foi dada. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC) é o único tipo que não tem estudo ambiental prévio apresentado pelo empreendedor. Basicamente, com um apertar de botão, a licença sai impressa e fica tudo na autodeclaração do empreendedor.
Foto: José Cruz/Agência BrasilComo barrar isso? – O STF já falou que esse tipo de licença só pode ser aplicado para pequenos empreendimentos de baixo potencial poluidor, mas a lei estende para a maior parte dos processos de licenciamento. Na prática, tudo que não tem EIA/RIMA vira essa licença autodeclaratória.
Quais as consequências dessas mudanças no dia a dia dos cidadãos? – Significa que o país voltará a um estágio de descontrole ambiental anterior a 1981. Época em que Cubatão (SP) era chamado de “Vale da Morte”. Crianças nasciam anencéfalas porque as mães estavam contaminadas por poluição industrial. Era esse o mundo pré-licença ambiental. Quando a gente transforma tudo num apertar de botão, achando que depois os órgãos vão fiscalizar, a gente está gerando potencial para esse tipo de situação. Os órgãos não vão nem ler os relatórios de caracterização dos empreendimentos. Está na lei que é por amostragem. O país não vai saber o que está acontecendo.
Qual o impacto dos quatro anos do governo Bolsonaro, que defendia “passar a boiada” em relação à política ambiental? – Foi o período que a literatura chama de desmantelamento de política pública na modalidade ativa. O governo agiu intencionalmente para desestruturar a política ambiental e outras políticas públicas. Muitas coisas foram paralisadas. O Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que existe desde 2004, deixou de funcionar. O Fundo Amazônia ficou com mais de R$ 3 bilhões parados na conta, só rendendo juros, sem aplicar em projeto nenhum. Eles não extinguiram o Ministério do Meio Ambiente, mas, por dentro, paralisaram a política ambiental e editaram muitos decretos, instruções normativas e portarias flexibilizando as regras. Como não conseguiram fazer as mudanças no Congresso, optaram pelas “boiadas”, por tratorar no nível infralegal. Foram anos terríveis. Uma tragédia para a política ambiental.
Como aliar preservação ambiental e desenvolvimento econômico? – Esta proposta do Congresso não está aliando nada. Está, na verdade, tirando a proteção e o controle ambiental. Querem um crescimento econômico, não desenvolvimento. Porque o desenvolvimento verdadeiro inclui a proteção ambiental dentro dele. É lógico que o licenciamento ambiental precisa ser aperfeiçoado. Em alguns casos demora demais, realmente. Mas isso, muitas vezes, não pode ser imputado ao órgão ambiental. Existem outros motivos.
Quais seriam estes motivos? – No caso do asfaltamento do trecho do meio da BR-319, quando eu estava no Ibama, isso já estava lá. Durante 10 anos, o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) não entregou o estudo prévio de impacto ambiental para o processo avançar. Estava paralisado porque o empreendedor não entregou o estudo. Esse processo começou muitos anos atrás e o EIA/RIMA foi devolvido porque não analisava com atenção a questão do desmatamento, o principal impacto da obra. Durante uma década, o DNIT não entregou esse estudo. Não há como culpar o Ibama pela demora. Em muitos casos, os órgãos ambientais recebem estudos muito deficientes. Essa é uma das causas para a demora que se atribui à concessão da licença. Outra causa é que os órgãos ambientais não têm gente suficiente para analisar os processos. Hoje, a carteira de empreendimentos do Ibama chega a 4 mil, e eles têm menos de 300 analistas que se dedicam ao licenciamento no país. Os órgãos ambientais estaduais estão numa situação muito pior em termos de equipe. E a solução que foi dada nesse projeto de lei do licenciamento vai gerar mais demora, porque tem tantas inconstitucionalidades que tudo vai caminhar para a judicialização.
O Observatório do Clima espera que Lula vete o projeto de lei? – A posição do Observatório do Clima é pelo veto integral. Não tem solução. Se forem feitos vetos de dispositivos específicos, a lei vai continuar muito ruim, porque a essência dela é toda no sentido de implosão do licenciamento, de olhar o licenciamento como uma barreira que tem que ser afastada. Trata-se da lei da não licença e do autolicenciamento. Não dá para estender o autolicenciamento, o licenciamento apertando o botão, para a maior parte dos empreendimentos.
O que acha do novo modelo de autorização ambiental proposto pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e aprovado pelas Casas? – Não dá para aceitar a Licença Ambiental Especial (LAE) proposta pelo senador Alcolumbre. Ela cria, na verdade, uma modalidade de licença por pressão política. Propõe que aquilo que o Conselho de Governo determinar como estratégico para o país vai passar a ter licenciamento numa fase única e com regras muito simplificadas, inclusive grandes hidrelétricas, uma usina de Belo Monte da vida. Estruturalmente, o texto traz muitos retrocessos.
Mas não é importante para o Brasil ter uma lei de licenciamento ambiental? – Claro que seria importante, porque nós temos só um artigo da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, várias resoluções do Conama e legislações estaduais, que muitas vezes, conflitam com a legislação nacional. Seria bom ter uma lei de licenciamento. Mas, com essa lei, não tem nem como conversar. E, se for sancionada, certamente o Observatório estará entre as organizações que vão recorrer à Justiça.
A exploração de petróleo e gás natural na Margem Equatorial ajuda ou atrapalha o Brasil? – O Brasil não precisa da exploração na bacia sedimentar da Foz do Amazonas para sua demanda interna. O país é o oitavo maior produtor de petróleo do mundo, e pouco mais de 50% da produção é exportada. Se gerenciarmos a demanda, temos petróleo suficiente para nosso suprimento. Que fique claro: não estamos defendendo acabar com a exploração de petróleo amanhã. Contudo, defendemos que não devem ser abertas novas fronteiras de exploração, como a bacia sedimentar da Foz do Amazonas, outras áreas na Margem Equatorial e a bacia de Pelotas, no Rio Grande do Sul, que se pretende explorar com intensidade. O mundo precisa caminhar para a descarbonização, precisa ter cronogramas sérios de eliminação da dependência dos combustíveis fósseis. O Brasil não depende, por exemplo, de carvão mineral, mas apostar na expansão do petróleo, como se o petróleo fosse solucionar os problemas brasileiros, é um equívoco histórico. É uma opção olhando para o passado.
A economia pode crescer sem o uso do petróleo? – O mundo vai ter que diminuir o uso de petróleo. É uma questão de sobrevivência. A queima dos combustíveis fósseis responde por cerca de 80% das emissões de gás de efeito estufa no planeta. No Brasil, em grande parte, o problema é o desmatamento, que gera gás de efeito estufa. Mas o petróleo que nós exportamos vai ser queimado em algum lugar e contribuir para o aquecimento global. Eu considero a proposta de expansão de petróleo, e não só a questão do Bloco 59, o principal equívoco do ponto de vista da política ambiental do governo Lula.
Quais alternativas de energias limpas para o Brasil? – Nossa matriz elétrica é bastante calcada em renováveis. Temos que atacar e resolver problemas socioambientais relacionados a hidrelétricas e empreendimentos eólicos. Temos que usar aquilo que o país tem como trunfo. Temos sol, vento, rios. Temos de reduzir nossa dependência de petróleo, de combustíveis fósseis, principalmente na parte de transportes. Nossa matriz rodoviarista usa muito diesel. É preciso encontrar solução para o transporte de carga, como os biocombustíveis. Nas cidades, a solução é investir no transporte público, de preferência eletrificado. Ainda temos um caminho longo em direção à descarbonização. O Observatório do Clima entende que o Brasil, entre as grandes economias do mundo, é o único país que consegue chegar à situação de carbono negativo, não apenas neutro, antes de 2050. A nossa aposta é 2045.