Midas era um rei da antiguidade que tinha o dom de transformar em ouro tudo o que tocava. Como presidente do País, Jair Bolsonaro tem dote semelhante, com potencial de melhorar não a própria vida, mas a de milhões pessoas. Basta tocar a ponta da caneta e assinar medidas provisórias, decretos ou sancionar projetos de lei que beneficiem principalmente as mais carentes.
Acontece que o ex-capitão do Exército que hoje chefia o Brasil age como o personagem da mitologia às avessas. Nem mesmo quando a encomenda vem de fora do Planalto e em forma de presente, Bolsonaro é capaz de manter pelo menos seu estado natural. Então, acaba transformando aquilo que chegou em forma de ouro em matéria sem valor.
Foi o caso da proposta que visava a distribuição gratuita de absorvente menstrual para estudantes de baixa renda de escolas públicas e de pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade extrema. A matéria, aprovada pelo Congresso Nacional, foi vetada com uma canetada do chefe do Planalto. Além de estranheza, a decisão causou uma grita geral, principalmente nas redes sociais.
Publicada no Diário Oficial da União, a reprovação da matéria chancelada pelo Senado e pela Câmara veio acompanhada do argumento de que o texto do projeto não estabeleceu fonte de custeio.
Vetos
“[Sobre] A despesa, ela [deputada Marília Arraes (PT-PE), autora do projeto] alega ser R$ 100 milhões. É muito mais, pela quantidade de pessoas, pela distribuição. Não é a cegonha que vai levar, tem logística de distribuição. O veto é em função disso. Se o Congresso derrubar o veto, vou tirar dinheiro da Saúde e da Educação, tem que tirar de algum lugar”, disse Bolsonaro.
O presidente sancionou o projeto criando o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, mas vetou o artigo 1º, que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos, e o artigo 3º, que estabelecia a lista de beneficiárias: estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.
Bolsonaro turrão malvadão
Para aliados e nas suas redes sociais, onde fala para apoiadores fanáticos, o presidente deu um tom político, tentando amenizar as críticas à decisão de votar o projeto. Também disse que a proposta está sendo usada com fins eleitoreiros, numa tentativa de colocá-lo como o “malvadão” da história por ter vetado o projeto de cunha social.
Turrão, Bolsonaro fez uma ameaça clara a outras duas Pastas que não têm nada a ver com a medida vinda do Congresso Nacional. Falou que vai “tirar dinheiro da Saúde e da Educação” para bancar a distribuição gratuita de absorventes femininos, caso o Parlamento derrube o seu veto. A ameaça pode se concretizar.
Também pelas redes sociais, o presidente do Senado, Rodrigo Pacho (DEM-MG), disse que o veto é “candidatíssimo” a ser derrubado. Os trabalhos na Casa devem ser retomados, de fato, somente na terça-feira (19).
Instituto Retomar aponta desigualdade de gênero
Integrante da Organização Não Governamental (ONG) Instituto Retomar, que trabalha com prevenção à violência contra mulher, Thaís Solon, classificou como uma infelicidade o veto do Presidente da República. Para ela, a decisão dele acentua ainda mais a desigualdade de gênero que existe no país.
“Isso é muito preocupante porque é uma questão de saúde pública que não está recebendo a devida atenção. Uma em quatro adolescentes faltam às aulas por não ter acesso a esses itens básicos de higiene menstrual”.
Segundo Thaís Solon, por conta dessa situação, as mulheres têm de buscar alternativas para suprir essa necessidade. Miolo e pão, jornais, revistas, panos velhos, entre outras coisas. Um perigo à saúde, porque aumenta o risco de infecção. “Síndrome do Choque Tóxico, que pode levar a óbito. Estamos falando aqui não é só de um veto. É de uma desigualdade de gênero”, alertou ela.
O Instituto Retomar iniciou recentemente uma ação contra a pobreza menstrual. Uma das ações é a distribuição de absorventes em banheiros públicos, como o da Rodoviária do Plano Piloto, para adolescentes e mulheres em situação de vulnerabilidade.
Mas ela confessa que apenas isso não suprirá a demanda por esse produto. “A gente vive num país onde 20% das adolescentes não têm água tratada. No Brasil, 200 mil meninas e adolescentes não têm acesso a banheiros dignos nas escolas: faltam itens básicos, como água e sabão”, pontua.
GDF apoia mulheres
A insensibilidade do Palácio do Planalto para abrir mão de um projeto social fundamental, felizmente, não contagiou os governadores. No Distrito Federal, por exemplo, duas iniciativas prometem compensar a falta de comoção de Jair Bolsonaro.
Numa delas, o governador Ibaneis Rocha encaminhou projeto à Câmara Legislativa reduzindo o preço do absorvente no DF. Com a aprovação, o item passa a fazer parte da lista de produtos da cesta básica que terão redução para 7% na alíquota do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).
Em outra iniciativa do GDF, a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus) vai lançar, na segunda-feira (18), a campanha Dignidade Feminina – Da transformação de meninas a mulheres: mais cidadania e menos tabu.
Além de rodas de conversa em escolas, capacitação de apoiadores e distribuição de cartilha sobre o tema em escolas, a ação vai incentivar as doações de itens de higiene. Será montado um grande esquema de arrecadação. Os kits de higiene serão coletados em uma ação integrada entre o poder público, a iniciativa privada, a sociedade civil, as empresas atacadistas de supermercado e as redes de farmácia.
Pontos de coleta
A proposta é que as secretarias envolvidas na ação indiquem pontos de coleta para as doações. A Secretaria de Turismo, por exemplo, destinou os Centro de Atendimento ao Turista (CAT) para ser um desses pontos de coletas dos kits de higiene. Tem CAT no Aeroporto, nos setores hoteleiros Sul e Norte, na Esplanada dos Ministérios (Casa de Chá), e nas administrações de Sobradinho e do Gama.
“A ausência da dignidade menstrual reforça a desigualdade de gênero na sociedade. Estamos falando, por exemplo, de estudantes que deixam de ir à escola ou de praticar esportes quando estão menstruadas porque não têm condições de comprar absorventes. Isso é um problema grave, que precisa ser debatido e solucionado. Por isso, essa campanha vai além de doar absorventes. Ela está muito focada principalmente em informar e educar essas meninas e mulheres”, explica a secretária de Justiça e Cidadania, Marcela Passamani, em entrevista para a Agência Brasília.