Anúncios machistas, exigindo “boa aparência” para contratação de mulheres, já foram mais comuns em classificados de jornais. Mas desde 1999, o artigo 373 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) proíbe este tipo de discriminação. No entanto, na prática, o cenário é bastante diferente do que prevê a legislação, no qual o currículo ainda não é a única forma de avaliação na contratação (ou não) de um profissional.
Além disso, depois de empregadas, também são tratadas como “objetos”. Mulheres relataram à reportagem casos de assédios explícitos, de discriminação e de como funciona a seleção em empresas da capital federal, de restaurantes de luxo a agências de marketing.
Joana lembra que, durante a contratação, ficou claro que a exigência era que fosse bonita. A jovem de 20 anos procurava por emprego e um dia foi ao restaurante para se candidatar à vaga. Ao entrar no ambiente, se deparou com o gerente. Depois de algumas perguntas, foi contratada sem ao menos mostrar o currículo.
“Conforme os funcionários têm mais contato com os clientes, precisam ser mais bonitos”, relatou a universitária que se identificou como Joana, funcionária de uma das principais churrascarias do centro de Brasília. Com o intuito de mudar a aparência da empresa, o restaurante passou a contratar mulheres para terem contato direto com os clientes. Antes disso, elas trabalhavam apenas na cozinha ou no caixa.
Após iniciar como recepcionista, a estudante mudou de função. Depois de uma conversa com o chefe, Joana passou a ficar no salão para ter contato direto com o cliente e servi-los.
“Nessa nova função você vai ver se está tudo bem, oferecer bebidas e sobremesas. Mas quero que foque nas bebidas, mulher tem mais jeito com isso”, explicou-lhe o patrão.
Maquiagem e calça apertada
Cansada de trabalhar dois períodos em pé, Joana pediu para trocar de área. O chefe respondeu: “não te quero na cozinha nem no caixa. Você tem que ficar no salão porque tem uma beleza diferente e desejo deixar à mostra”. Contratar mulheres fez com que criassem clientes fiéis ao restaurante. Eles vão toda semana e exigem ser atendidos por mulheres.
“Eles chegam lá (no restaurante) e falam ‘quero ser atendido por ela’ e apontam pra mim ou para outra garota”, explica Joana.
Logo depois de começar no trabalho, a estudante percebeu que está lá apenas para embelezar o ambiente. Pedidos para usar roupas mais apertadas e caprichar na maquiagem são recorrentes.
\”Um dia, o diretor de marketing falou que minha calça e camisa estavam muito folgadas e que eu deveria carregar mais minha maquiagem. Após isso, me deram uma camisa para usar e tive que comprar uma calça”, ressalta a jovem.
Classificação de mulheres
Durante a contratação de mulheres, também é comum que os contratantes exijam um “padrão de beleza”: as agências que intermedeiam acordos entre clientes e contratadas criaram uma “escala” para definir o “tipo” de mulher que deseja admitir. Divididas entre modelos “A”, “B” e “C”, as postulantes aos trabalhos têm que se submeter a uma avaliação subjetiva.
A produtora da Agência Sisters, Ranelly Caroline confirmou que existe a escala, mas que a responsabilidade pelo pedido do perfil desejado é unicamente do cliente.
“As mulheres que são consideradas A são as mais bonitas, as que são B têm uma beleza um pouco mais normal, e a C é mulher feia mesmo, não tem outra palavra”, disparou.
Anúncios como esse são comuns em grupos de redes sociais que tem a finalidade de facilitar o encontro de contratantes e postulantes às vagas. Os conteúdos postados pelas agências ferem gravemente o artigo 373 da CLT, ao definir o “tipo” de mulher que pode concorrer à vaga.
Altas e magras
O texto publicado, em diversas oportunidades, pelos proprietários das agências, deixa explícita a discriminação no procedimento de contratação das interessadas. “Preciso de promotoras tipo AA (bonitas, altas e magras) para congresso. Interessadas encaminhar fotos, altura, peso, idade e contatos”, publicou uma dona de agência no Facebook.
A estudante de enfermagem que se identificou como Carla conta que, apesar de não ser a favor do padrão exigido, precisa dos trabalhos. “Sou totalmente contra esse padrão de beleza que é imposto. Mas eu preciso trabalhar. Então, felizmente ou infelizmente, eu me enquadro neste padrão que é pedido”, disse a modelo.
Além de ter que se portar de acordo com as orientações recebidas por superiores do restaurante, Joana sofre assédios sexuais contínuos. “(Os clientes) me elogiam com outras intenções, me olham com outros olhos. Sou um objeto”, ressalta. Pedidos de telefone, convites para sair, elogios exagerados se repetem ao longo do dia.
“Perguntam meu telefone, me chamam pra sair e eu não posso fazer nada. Apenas tenho que sorrir e sair de perto”, contou. Os assédios não acontecem apenas pelos clientes, os próprios colegas de trabalho também o fazem. “O maître esbarrou a mão ‘sem querer’ na minha bunda. Falando que ia fazer massagem para eu melhorar”, explica Joana.
As investidas dos clientes não se limitam apenas ao campo da especulação. Carla afirma que, durante o processo de contratação para eventos e ações de marketing, recebe propostas para fazer programa com os clientes.
“Me abordam como se fosse um cliente normal, fazendo perguntas de como trabalhamos e pedem foto, até que questionam se eu saio com cliente, dizendo o valor que seria pago caso eu aceitasse, e é uma quantia boa em comparação ao cachê que ganhamos em eventos”, explicou a estudante, que acredita que “muitas” meninas aceitam as propostas pelo dinheiro que é oferecido.
Crime não deixa vestígios
Considerando que a discriminação reside no campo subjetivo, o crime pode ocorrer sem deixar vestígios, é o que opina a advogada Gabriela Zerbine. “O grande problema é que o empregador só é proibido de colocar na oferta essas discriminações. Ou seja, todos podem se candidatar, mas ele pode contratar quem quiser, e pode preferir certo sexo, estatura, idade etc. Não há como controlar isso, apesar de sabermos que existe essa discriminação”, disse.
O Brasil é signatário da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que estabelece as hipóteses em que ocorre discriminação em matéria de emprego e profissão, estabelece as obrigações dos Estados-membros, enumera hipóteses que não serão consideradas discriminatórias e fixa as regras de sua ratificação, vigência e denúncia.
Para os fins da Convenção nº 111 da OIT, discriminação significa toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão.
Também é considerado ato discriminatório qualquer outra distinção, exclusão ou preferência, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidades, ou tratamento emprego ou profissão, conforme pode ser determinado pelo país-membro concernente, após consultar organizações representativas de empregadores e de trabalhadores, se as houver, e outros organismos adequados.
A Lei Federal n.º 9.029, de 13 de abril de 1995, foi aprovada para regulamentar esses direitos assegurados constitucionalmente, que é o diploma brasileiro específico sobre a discriminação no emprego.
A lei tenta coibir algumas práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, pois a discriminação pode ocorrer não só durante o contrato de trabalho, mas também antes de seu início, durante o processo seletivo e após sua rescisão.
Ficou prevista, no artigo 1º da referida lei, que é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, nesse último caso, as hipóteses de proteção aos menores previstas constitucionalmente.
Segundo a maioria da jurisprudência de nossos tribunais, a lista de possibilidades discriminatórias apontadas pelo artigo 1º é meramente exemplificativa, já que expressamente veda “qualquer prática discriminatória e limitativa”, como por exemplo, nos casos de discriminação associada ao uso de álcool ou drogas, crenças religiosas, convicções filosóficas ou política, orientação sexual, saúde física, sensorial e mental, ou ainda, consulta aos serviços de proteção ao crédito para fins de admissão ou manutenção no emprego.
Quanto ao sujeito ativo de tais crimes, temos o próprio empregador (quando se tratar de pessoa física), seu representante legal, ou ainda, o dirigente de órgãos públicos e entidades das administrações públicas diretas, indiretas e fundacionais de quaisquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. A pena varia de detenção de um a dois anos, pagamento de multa, e proibição de empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais, se o crime resultar de preconceito de etnia, raça ou cor.
Da mesma forma, tal lei prevê que o rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais, ou a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.
16 anos na fila
O projeto de lei 3980/00 se arrasta desde dezembro de 2000. Há dezesseis anos na Câmara dos Deputados e apresentado pelo ex-senador Geraldo Cândido (PT-RJ), dispõe sobre a proibição da expressão “boa aparência” nos anúncios de recrutamento e seleção de pessoal, dentre outras providências. Ainda prevê multa ou prestação de serviços à comunidade a quem cometer tal infração.
MPT estimula denúncias
Atualmente, existem 10 procedimentos no Ministério Público de Distrito Federal e Tocantins (MPT-DF/TO) sobre o tema. As denúncias podem ser feitas pelo site do órgão e o denunciante pode, inclusive, requisitar sigilo.
A assessoria do MPT-DF/TO garantiu que a entidade atua no sentido de fiscalizar e punir empresas que veiculam anúncios discriminatórios. Geralmente, as empresas condenadas como rés primárias assinam um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com previsão de multa, caso veiculem novamente algum anúncio desta natureza.
Um dos pontos do termo assinado pelas empresas denunciadas consiste em um comprometimento por parte da denunciada em não discriminar candidatos por motivo de idade, sexo, origem, raça, cor, situação familiar, aparência física, estado civil ou qualquer outra forma de discriminação. O MPT exige que o conteúdo dos anúncios tenha apenas as informações estritamente relacionadas às atividades profissionais, além de ter que deixar em local visível na sede da empresa, por 60 dias, a assinatura do termo de conduta.}