Neste mês de novembro foi discutido no Congresso o projeto do Senador Magno Malta chamado Escola sem Partido. Num momento em que vivemos grandes transformações muitas pessoas consideram que essa proposta é uma guinada à direita e um retrocesso. Para outros é o resgate de valores éticos e morais perdidos ao longo do tempo.
Fomos conversar com o Professor Dr. Sergio Euclides Braga Leal de Souza sobre essas mudanças socioculturais que estão ocorrendo não só no Brasil, mas no mundo como a questão da aceitação dos refugiados, os candidatos de direita e extrema-direita na França e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.
BC – Com todas essas mudanças que estamos vivendo na sociedade, o senador Magno Malta traz a tona um projeto de lei da Escola Sem Partido. Os professores reagem coletivamente dizendo que isso vai interferir no direito e na liberdade de ensinar. Qual é a sua opinião com relação a todas essas mudanças e as reações muito mais conservadoras do que inovadoras na questão social?
SE – Quando o momento é muito conturbado e o curto prazo se revela opaco, o que a gente procura é levar a análise a um nível estrutural, mais amplo. Tentar pensar as coisas sob uma perspectiva histórica. No meu entendimento, o que está acontecendo, hoje, é a maior evidência que houve mudanças importantes nos últimos anos. A natureza da reação indica que houve essas mudanças, tanto que tem muita gente incomodada, em diversos setores da sociedade. Então, penso que essa onda conversadora, que tem suas especificidades no Brasil, mas que é um fenômeno mundial, se deve às mudanças estruturais, até de paradigmas civilizacional, que o mundo vem observando nos últimos 25/30 anos. Se a gritaria não vem de setores beneficiários da velha ordem, é coordenada a partir deles. Isso aconteceu nos EUA e está acontecendo no Brasil. Se essa reação é o canto do cisne, eu, pessoalmente, gostaria de acreditar que é o canto do cisne. Essas pessoas não têm o poder de parar a história, não têm o poder de investir contra os avanços. Então, elas reagem histericamente. Uma das reações mais perturbadoras do momento que estamos vivendo é a supressão do pensamento. Não existe debate civilizado e racional em torno dessas propostas. As pessoas estão parando de pensar e essas reações são mais emocionais do que qualquer outra coisa.
BC – Você acredita que alguns segmentos da sociedade, até algumas famílias, estão se sentindo um pouco perdidas e, em função disso, elas pedem de alguma forma uma liderança? Essa liderança pode ser política, religiosa, e a escola representa uma demarcação de rumo, uma orientação…
SE – Uma outra característica da contemporaneidade é a perda das referências. Estamos vivendo um momento que o velho está desmoronando e o novo ainda nem despontou. Existe um vácuo e ele pode ser ocupado por lideranças do tipo carismáticas, que prometem soluções simples para problemas complexos. Um exemplo disso é a eleição de Donald Trump nos EUA. Vai haver eleições parlamentares na Europa nos próximos meses e as pessoas estão assustadas. Existe, de fato, uma perda de referências, que leva as pessoas a buscarem aqueles encaminhamentos e propostas que a elas parecem mais sólidos. Aí está a emergência do fundamentalismo no mundo, não apenas o islâmico, que é o mais famoso, mas o que está nos EUA, que elegeu Trump.
BC – Existe uma guerra com o movimento dos imigrantes, que tem reflexo no Brasil, entre o antigo, o novo e esse vazio. É possível que surjam novas lideranças que podem desvirtuar os caminhos e as buscas?
SE – A primeira reação das pessoas a essa desorientação é buscarem pessoas que articulam discursos sobre o existente, que vem do existente. Por isso, esses discursos tendem a ser conservadores. Eles propõem um retorno a situações anteriores com as quais as pessoas podem se identificar. Então, esse é um momento que, inicialmente, beneficia esse tipo de liderança e a história está cheia de exemplos de pessoas que prometem a felicidade recorrendo ao passado.
BC – O fenômeno globalização culminou não só na expansão dos comércios, tropas e economia, mas também de valores. Com o advento da internet, houve aproximação dos povos. Hoje, esse campo está sendo usado para discriminação, ofensa e necessidade de verbalização dessa ausência de chão. Como você enxerga isso?
SE – Muita gente critica a internet, mas precisamos entender que é um recurso, uma possibilidade. O que define se a internet é boa ou ruim é o uso humano. Da mesma maneira que você pode utilizar a rede para articular o futuro, se pode usar a rede para articular qualquer demanda que tenha apelo para você. Gosto muito de uma passagem do Humberto Eco, que ele diz: “Em todo o sempre, pessoas falavam besteira. Só que antes, depois de duas garrafas de vinho em uma mesa entre amigos, a coisa morria por ali. Hoje, as besteiras ganham o mundo”. Então, tem muita gritaria por conta disso. Há outra coisa que é preciso reconhecer: havia uma demanda reprimida por expressão no mundo das velhas mídias. Hoje, com a multiplicação das fontes, dos canais, as pessoas falam como se sentem. Tem gente que posta na rede tudo, o que come, bebe, hora que vai no banheiro. Em um primeiro momento, o que a gente percebe é um quadro de incerteza e muita desorientação. Esse quadro favorece a emergência de lideranças carismáticas autoritárias. Gente que se diz o caminho, a verdade e a vida. Isso também ocorreu no passado. Após esse momento, vai haver uma mudança de sensibilidade das pessoas com esses recursos e, talvez, haja uma oportunidade para o discurso racional prevalecer.
BC – Quando o pai matricula o filho em uma escola privada, ele faz uma escolha entre escolas religiosas com uma gama de ofertas. Quando o filho entra, ele sabe o que vai acontecer por ali. Agora, se tratando de escolas públicas, temos famílias com os mais diversos valores, de todos os níveis sociais, que vão para um mesmo espaço físico. E professores que também têm suas crenças e valores. Qual deve ser a condução da escola pública na renovação desses valores e na preparação dos seus estudantes para não se deixar levar por lideranças extremas?
SE – Se a sociedade é plural, a escola pública tem que ser plural. Existem as escolas confessionais, mas a escola pública tem que ser plural. Talvez, se fosse mais interessante e, de fato, houver uma boa fé de parte dos defensores do Escola Sem Partido, a designação poderia ser mudada. Ao invés de Escola Sem Partido, Escola de Todos os Partidos. Agora, se uma das críticas da Pedagogia é que a escola se afasta da realidade e que, portanto, a escola deveria se aproximar dos problemas reais, como não vai discutir questões de raça, desigualdade socieconômica? O problema é que determinados setores da sociedade partidarizam a discussão da desigualdade. Como em um país tão desigual como Brasil você não vai discutir isso? Normalmente, pessoas que refletem os interesses dos setores beneficiários dessa ordem desigual não querem essa discussão. Se você quiser discutir a realidade brasileira, você tem que levar essas coisas pra dentro da sala de aula. Sempre ouvi o discurso que os professores são considerados de esquerda. Eles são considerados porque discutem esses problemas. É possível discutir esses problemas sem ser de esquerda? Se eu defendo a tese que o maior problema do Brasil é a desigualdade socioeconômica, é muito difícil escapar desse rótulo. Mas, essa discussão tem que ser feita. O que eu sempre testemunhei dentro das escolas e nas universidades é uma pluralidade de posições entre os professores. Só que eu acho que os interesses por trás dessa proposta são regressivos, porque, na realidade, eles parecem querer sustar esse debate. É impossível. Se vivêssemos em uma sociedade perfeita, não teria a necessidade.
A homossexualidade diz respeito a sua vida privada. Por que essa discussão é pública? Essa discussão é pública porque nós vivemos em uma sociedade que restringe os direitos sexuais de um determinado segmento. Se não houvesse essa restrição, não teria o porquê do debate ser público. Não tem como aproximar a escola da realidade sem discutir esses assuntos. A escola que eu defendo é uma escola de todos os partidos, que os conservadores venham, se interessem por educação e participem desse debate. Mesmo no regime militar, o debate sempre aconteceu dentro das escolas. Como é que você susta esse debate? A educação tem a sua razão de ser na discussão dessas coisas. Antes de tudo, é um problema operacional e, claro, os professores se ofendem com essa proposta, porque essas pessoas que tomam iniciativas desse tipo são pessoas de fora da escola. Não conhecem a realidade educacional, especialmente das escolas públicas. Os professores têm sido convidados para participar desse debate? Existem questões sérias quanto à legitimidade desse governo, que não chama ninguém para conversar. Acho que a proposta não vai prosperar por conta disso, existe a questão do encaminhamento, da filosofia e da operacionalização. São obstáculos muito difíceis de serem contornados.
BC – Você acredita que os pais que matriculam os filhos nas escolas públicas têm consciência dessa proposta plural, enquanto um estado laico e todos os preceitos que já estão na Constituição?
SE – O que a gente tem testemunhado nos últimos anos no Brasil é um avanço de um certo pensamento ligado a religião. Em última análise, desafia o princípio constitucional da separação entre Igreja e Estado. É um fenômeno ao qual nós temos que dar a devida consideração, porque já existem manifestações de intolerância religiosa e a mídia cobre mal. Existe um pensamento que tem prosperado nos últimos anos na sociedade, que é chamado de neopentecostalismo, um pensamento fundamentalista. Sem uma visão clara do que seja sociedade, dos problemas humanos e uma proposta de encaminhamento para a resolução dos problemas. O perigo que essa proposta nos coloca é que é uma proposta fechada. Eles não admitem discussão. Os pais que comungam dessa visão estão, obviamente, perturbados. Eles se perturbam em qualquer ambiente em que diferentes perspectivas se encontram livremente. Veja bem, não é papel da escola reproduzir valores familiares. Não é meu papel reproduzir os valores de uma família em que o pai é alcoólatra e a mãe comunga e participa dos abusos com a criança. Não é papel da escola reproduzir valores de uma família desestruturada. O papel da escola é, através do confronto dos diferentes problemas, criar condições para que se discuta racionalmente essas coisas e que as pessoas envolvidas proponham encaminhamentos para o equacionamento desses problemas. Acho engraçado, porque isso é o que sempre se cobrou da escola.
BC – Você acredita que, mesmo com essa onda conservadora, a escola vai conseguir avançar nessa linha de evolução na discussão de valores?
SE – É inevitável. Uma das coisas que eu acredito nessa transição tecnológica é o empoderamento. As pessoas estão mais empoderadas do que eram no passado. Se os interesses das pessoas são diversificados, a tendência é que, a menos que nós nos matemos, a gente busque alguma forma de administrar essa diversidade. As estruturas e práticas de poder estão mais transparentes por causa das novas tecnologias, então, acho que é natural que as pessoas discutam o porquê poucos tem tanto e muitos não têm nada. A maior transparência do mundo faz com que percebemos essas coisas e que questionamos. Me lembro de uma matéria que saiu no Diário do Centro do Mundo, que tem uma jornalista na Suécia que escreve como correspondente. Ela entrevistando autoridades e questionando como a Suécia equacionou os problemas políticos. Segundo uma das autoridades, o instrumento mais poderoso no combate à corrupção é o fato de toda declaração de imposto de renda é informação pública. Não importa se você é do setor público ou privado. Sendo assim, você tem de fazer por merecer o que você ganha aos olhos dos outros. Em última análise, o que você ganha é a sociedade que te proporciona. Ninguém ganha dinheiro sozinho. De vez em quando, meu pai reclama dos custos de seus funcionários e eu digo: Se não houve empregados, como você usufruiria do seu grau de prosperidade? Eles nunca terão uma ínfima parte do que você tem, embora trabalhem junto o tempo inteiro. Essa idéia é inerente, revolucionária. Quem se sente beneficiado com o que vivemos não quer fazer essa discussão. As distribuições desiguais de poder e influência em sociedades complexas como a nossa estão cada vez mais visíveis aos olhos das pessoas. Acho que, se a gente sobreviver a esse período de turbulência, o século XXI será uma nova Renascença.
Sergio Euclides Braga Leal de Souza é professor há 30 anos, Doutor em Comunicação pela Universidade do Colorado, Mestre em Comunicação pela UNB, Bacharel em Jornalismo pela Universidade de Brasília. Professor de Ética e Legislação em Comunicação e Crítica da Mídia no UniCEUB.
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