A Inteligência Artificial (IA) é um dos grandes assuntos do momento. De um lado, entusiastas (normalmente aqueles que veem perspectivas de lucros com essa tecnologia) anunciam que será um grande avanço para a humanidade, ou, mais enfaticamente, a “salvação da Terra”. De outro, empresários, cientistas e políticos pedem cautela, pois há riscos de que a IA aprofunde ou traga problemas maiores à civilização.
E nós, cidadãos comuns, no meio dessa discussão, nos imaginamos em um filme, naquele futuro dos carros voadores, dando ordens ao vento para que as coisas sejam feitas sem que tenhamos de empenhar esforço físico ou intelectual próprios, ou confinados num tubo de nutrição na fazenda humana, servindo de pilha para a Matrix.
Uma análise do pesquisador bielorruso Evgeny Morozov me fez pensar no assunto esta semana. O foco de estudo de Morozov são as implicações políticas e sociais do progresso tecnológico e digital.
Por analogia, penso na ascensão da internet e da telefonia celular – que mudaram o mundo nas últimas décadas. Avançamos, mas não resolvemos nossos problemas, e nos deparamos com outros novos. Só nos adaptamos à alteração na realidade. Até porque os benefícios das novas tecnologias são condicionados pela situação socioeconômica dos usuários.
A telefonia celular, por exemplo, aumentou a nossa conectividade: tendo cobertura de rede e pagando a conta, podemos falar com quem quisermos a qualquer hora e de qualquer lugar. Dependendo do tipo de trabalho que executamos, podemos fazer isso de dentro de um escritório ou numa praia do outro lado do mundo. Desde que tenhamos dinheiro para a viagem.
No entanto, junto com o aumento da conectividade veio um aumento da individualização e do isolamento das pessoas: é comum vermos famílias e amigos ao redor de uma mesa, calados, cada um de olho no seu celular, na plenitude da solidão compartilhada.
Além disso, os assuntos e obrigações de trabalho extrapolaram as fronteiras dos ambientes profissionais e passaram a nos exigir atenção em qualquer lugar e a qualquer hora.
O sociólogo Richard Sennet fala sobre isso no livro A Corrosão do caráter – Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Sennet aponta que o teletrabalho, ou home office, afeta tanto a organização familiar como a forma de interação do indivíduo com o mundo e diminui o espaço para expressão da individualidade, que é atropelada pela prática laboral – daí o termo corrosão do caráter.
A “epidemia de solidão”, que virou assunto no período da pandemia da covid-19, só se agravou naquele período. Mas, em grande medida, ela se deve também à mudança nos relacionamentos humanos advinda do avanço das tecnologias de comunicação: conectividade não é sinônimo de proximidade e conexão. E o distanciamento entre as pessoas tem reflexo direto na saúde mental.
Os potenciais da Inteligência Artificial na saúde, na comunicação, no lazer, na gestão pública e privada e nas mais diversas áreas da atividade humana são inúmeros – alguns positivos, outros não. E para alguns serão mais proveitosos do que para outros, como em uma eventual desvalorização ou substituição do trabalho humano pela IA, que não recebe salário nem tem filho para criar. Bom para o patrão, péssimo para o trabalhador.
O que podemos afirmar, com certeza, é que a Inteligência Artificial não vai mudar a essência do ser humano, nem os problemas e diferenças que tornam a vida mais difícil. Não podemos terceirizar à tecnologia a responsabilidade nem as implicações do que representa ser humano.