Até aquela tarde, tudo que eu sabia sobre Elias Canetti resultava de habituais (ou ocasionais) leituras de revistas e jornais estrangeiros. Sabia que nascera na Espanha. Que sua família, perseguida por causa das origens judaicas, mudara-se para a Bulgária – onde o avô do menino Elias passara a “fazer negócios em dezessete línguas e dialetos”. Sabia ainda que o adolescente Elias tornara-se jovem na Inglaterra, educara-se na Suíça e escolhera o alemão para expressar-se literariamente. Sabia por fim, que como um destacado romancista do século XX não tardara a ser conhecido para além das fronteiras da Europa.
Breve parada na capital francesa (estava a caminho da Alemanha, a fim de ver a grande Feira Anual do Livro de Frankfurt e escrever sobre ela no jornal no qual trabalhava) proporcionou-me um inesperado encontro com Canetti. Aconteceu no momento em que um dos seus livros – o mais falado nos meses recentes – começou a me acenar do interior da vitrina de uma livraria conhecida em meio mundo.
Na edição inaugural, em língua alemã, o romance intitulou-se Die Blendung (A ofuscação). Na tradução francesa, escolheram para título uma antiga expressão, idêntica em espanhol e português: Auto de fé. Assim denominava-se a cerimônia pública na qual o Tribunal da Inquisição (instituição medieval) costumava queimar vivas pessoas condenadas por descumprirem os mandamentos da Igreja Católica. Como se não bastasse, os promotores afirmavam que aquilo era apenas o começo da tortura do condenado; no plano extra-terreno, mesmo que os pecados cometidos na Terra não fossem lá muito graves, a alma do condenado passaria não um século, mil séculos, mas a eternidade inteira a torrar nas chamas do Purgatório!
Auto de fé, o romance, não se passa na Idade Média, mas nos começos do século XX, em local não muito bem especificado. O cenário do drama é uma grande biblioteca (variada, como a inteligência humana), dirigida pelo sábio Kien. Ele passa dias e noites lá dentro, a ler tudo que é possível, até ser devorado pelas chamas – que consomem todo aquele gigantesco armazém de testemunhos, idéias e sugestões.
Ignora-se quem acendeu a fogueira. Mas o narrador aproveita a circunstância para lembrar – e condenar, ainda que sem resultados palpáveis – aqueles que, em nome de causas tão elevadas que não chegam a ganhar forma, estão sempre a transformar idéias em cinzas e cabeças independentes em torresmos.
Auto de fé não é a única obra de Canetti. Ele escreveu outras ficções e alguns estudos de sociologia e política. Entre os quais o destaque vai para Massa e poder, que trata da exploração das multidões pelos grandes e imortais vampiros da economia e da política. Meses atrás, um amigo recém-chegado da Europa presenteou-me com um livro, que mais podia ser? Um livrinho de bolso com pouco mais de duzentas páginas. Título: Fünfzig Charaktere (Cinquenta caracteres).
Ah, o Canetti! Ele era mesmo o Rei da Surpresa. Como eu poderia ter imaginado que fosse também psicólogo? Mas o fato é que no livrinho ele usou a psicologia como instrumento para revelar a índole, descobrir a cara escondida de cinquenta tipos de indivíduos com quem frequentemente temos de conviver: uns tolos, outros nascidos com o instrumental necessário para sacanear o próximo, passar à frente de todos e alcançar o topo da pirâmide social somente por ter pernas e garras igualmente compridas. Outros…
Para alertar e, se possível, divertir o leitor, Canetti criou vocábulos compostos (em alemão), com os quais ressaltou o lado negativo dos seus cinquenta caracteres. Dois exemplos: 1) O Lambenomes, cujas papilas línguais se excitam e descobrem – a léguas de distância – o nome daquele que vale a pena lamber, ou seja, bajular. 2) O Pseudorretórico: caçador de ouvintes incapazes de entender as porcarias que vomita com seu discurso.
Se o leitor pensa que tive vontade de enriquecer com caracteres brasileiros a lista de Canetti, acertou. Mas como espaço é limitado, guardei-os no fundo da gaveta à espera do dia certo.