De mansinho, com um artigo aqui, uma entrevista ali, um tema vai sendo
introduzido na opinião pública sem que essa se dê conta exatamente o que está
em jogo. Em doses homeopáticas, empresários, autoridades governamentais e até
urbanistas de renome se apresentam como defensores das mudanças de destinação
de uso de setores do Plano Piloto, projetado por Lúcio Costa.
Um dos diferenciais do projeto premiado mundialmente e considerado
Patrimônio Cultural da Humanidade é a segmentação das áreas da cidade, segundo
um propósito de uso. Assim nasceram os setores Hospitalar, de Rádio e TV,
Bancário, Autarquias, Hoteleiro e Comercial, além dos habitacionais, é claro.
A evolução das realidades empresariais, laborais e até mesmo em
decorrência da ganância da indústria da especulação imobiliária fez com que
imóveis de algumas dessas áreas ficassem ociosos, notadamente nos setores
Comercial e Bancário Sul.
Sete mil imóveis desocupados
Em entrevista recente ao âncora Brunno Melo, da Rádio CBN, a
secretaria-adjunta de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Giselle Moll, estimou
em sete mil salas, pisos e lojas desocupados, sendo pelo menos cinco prédios
inteiros vazios. Segundo ela, são imóveis antigos e que demandam altos
investimentos de seus proprietários para atender às exigências empresariais da
atualidade.
Para evitar a ociosidade, ela propõe mudar a lei, ou incluir no futuro Plano
de Preservação do Conjunto Urbano de Brasília (PPCUB) autorização de que o SCS
– e quem sabe o SBS – possa abrigar residências. Segundo Moll, isso seria,
inclusive, uma forma de resgatar a área central de Brasília, hoje precarizada e
sucateada.
Um toque mágico de bilhões
A medida vem protegida de uma suposta visão social de propiciar mais
moradia a quem não tem. Mas quem teria recursos para morar no centro do Plano
Piloto? Os segmentos sociais de baixa renda?
Na verdade, por trás do que seria uma simples alteração de uso, está o faturamento
de milhões de reais pelos proprietários, muitos conhecidos do mundo da política
e da especulação imobiliária.
Num toque de mágica, ganhariam uma massa de novos potenciais
consumidores. Assim, não precisariam baixar o preço de seus imóveis – se
adaptando às regras da lei da oferta e da procura – muito menos precisariam
revitalizar essas unidades. Para receber moradores, bastaria uma simples maquiagem
e, rapidamente uma sala viraria quitinete, ou um piso de prédio, se tornaria
uma residência familiar.
Conta ficaria para o GDF
A conta pesada ficaria, mais uma vez, para o GDF. Como salientou na
mesma emissora o diretor do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), Daniel
Mangabeira, abrir essas áreas para moradia implica em uma nova arquitetura para
aquele espaço.
Não só as áreas públicas, calçadas, estacionamentos, jardins e vias
teriam que ser repensadas, como também a infraestrutura. Uma das citadas por
ele – e caríssima – é a rede de esgoto.
Segundo Mangabeira, as dimensões de uma rede de captação sanitária voltada
exclusivamente a atividades empresariais é diferente dos setores residenciais.
Todas essas mudanças podem custar bilhões e quem pagará será o contribuinte.
Relevo inadequado
Além disso, o relevo no local não é adequado para a circulação de
crianças, cachorrinhos e mamães empurrando carrinhos de bebês. As vias internas
possuem dois níveis: um a flor da terra e outra subterrânea.
Entre os blocos existem enormes vazios para a entrada de ar e luz nas
vias subterrâneas. A altura é da ordem de quatro metros. Vão aterrar tudo isso?
Ou não vão autorizar residências com crianças? Sorte que o hospital de Base
fica em frente. E o Sarah também.
Falta projeto de revitalização
É duvidosa a assertiva da representante do GDFde que as residências vão revitalizar o SCS e o SBS. A avenida W3
Sul nega tal premissa. Nas quadras 500, diversos prédios há anos abrigam moradias
em seus andares superiores. Nem por isso, a artéria principal do Plano Piloto é
exemplo de vitalidade. Pelo contrário.
O que falta na área central de Brasília é um projeto eficaz de
revitalização. Isso foi planejado há algumas décadas pelo arquiteto Paulo
Bicca, que previa para ali uma área 24 horas, interligando a W3 ao Eixinho Leste.
Mas o Iphan não autorizou.
Ali, hoje, a iluminação é precária, as praças e passeios públicos estão
cacarecados e não há atrações para seu uso à noite e aos fins de semana. Nem
mesmo uma ciclovia passa em seu interior.
Foto: Chico Sant\’Anna/ArquivosRestaurantes panorâmicos – No passado, tradicionais restaurantes, como o lusitano Cachopa e o
capixaba Panela de Barro, promoviam a vitalidade local. No alto de diversos
prédios lá instalados foram reservadas áreas na cobertura para restaurantes
panorâmicos. Em São Paulo, eles são uma coqueluche permanente. Por que não
incentivar esse uso. Sai bem mais barato!
Livre da Lei do Silêncio
Na ausência do Estado, coletividades de Brasília têm encontrado no Setor
Comercial Sul espaço para curtir seu som, sem as agruras da Lei do Silêncio. É
o caso do Coletivo Labirinto. Seu lema: SCS, Urbanismo, Arte e Lazer.
Foto: Criolina/DivulgaçãoFoi lá que esses grupos encontraram espaço para expressar sua
musicalidade sem perturbar ouvidos delicados que os afastaram das entrequadras
comerciais. As ruas subterrâneas do SCS se transformam em palcos para grandes festas
que movimentam os fins de semana e dão vida ao local.
Para Rafael Sebba, um dos integrantes do Coletivo Labirinto e mestrando
em Arquitetura e Urbanismo na UnB, é preciso entender que o SCS é um importante
polo cultural da cidade. E isso se dá, entre outros fatores, pela ausência de
conflitos ligados à Lei do Silêncio, já que não há moradia.
“Se isso for afetado, teremos ainda menos espaços pra produção cultural
no DF. Então qualquer mudança tem que partir do pressuposto de que se trata de
área de interesse cultural, e isso não pode ser afetado, pois além de ter
importância simbólica e de identidade, representa importante centro de
atividades econômicas com geração de emprego e renda”, diz ele.
Foto: Rasman/DivulgaçãoFica, então, a pergunta: transformar o SCS em residencial irá exilar
mais uma vez a juventude que gosta de curtir um bom som? Não seria melhor
revitalizar a Praça dos Artistas, a Praça do Povo, os banheiros públicos, a
acessibilidade e a segurança pública para que Brasília toda volte a usufruir
daquela área sem medo?
Ou isso não atende às demandas da especulação imobiliária?