Anna Ribeiro (*)
O barulho do freio e o forte estampido do impacto me fizeram saltar da cama para a janela. Um carro bateu numa árvore. O impacto partiu os dois – árvore e carro. Em minutos, sirenes anunciavam que o socorro estava a caminho. Policiais, bombeiros, viaturas, uma ambulância. Alguma esperança de que ainda havia vida. Talvez a tal vida já não habitasse aquele corpo.
Às vezes, a gente morre antes de morrer. Às vezes a vida te abandona antes da partida final.
As luzes flamejantes do socorro alertavam que não seria um resgate fácil. Haviam se fundido, se misturado. É assim que as coisas complicam, quando uma parte se mistura tanto à outra parte que para se fazer o resgate é preciso causar um segundo trauma, um segundo acidente.
Trânsito parado. A vida de alguém parou. Acompanho como posso, da janela, com lágrimas e caneta nas mãos. Minhas ferramentas de sobrevivência. O tempo transcorre. O resgate não se efetiva. Como somos frágeis, quebráveis, quebrantados.
Ai de mim, ai de ti! Que não nos saia do corpo a vida. Que não sejamos abandonados antes da hora.
As árvores parecem também observar tudo tão atônitas quanto eu. Não há um sinal sequer, nenhuma folha faz qualquer movimento. Observam. Talvez preocupadas com a árvore atingida tão gravemente, tão brutalmente. Quem se machuca sempre arrasta algo consigo.
O carro avançou a calçada e bateu na árvore que ali estava. Quebradas. A árvore e ela. Mais ambulâncias. Uma vítima a ser socorrida. A outra se regenerará. Costumo usar esta mesma calçada para caminhar nesse horário. Mas a vida me acompanha. Não fui antes. Espero não ir antes. Espero que meu corpo não me deixe antes da vida se esvair de mim.
O que aconteceu? Assisti da janela. Não há explicação. O resgate não termina. Era fim de tarde. Agora, início da noite. Tons melancólicos do entardecer ao fundo da cena. Uma leve brisa parece tentar amenizar a dureza da tragédia que se apresenta.
É preciso frear antes. É preciso acelerar em alguns momentos. É preciso parar antes de ser parado pelo caminho.
Nós paramos de respirar. Eu e as árvores. Estamos assustadas. A vida ou a falta dela é assim. Te pega. Te para. Te parte ao meio. Te quebra em pedaços. Será que a gente se junta? E a moça? Como era o segundo anterior ao baque? Como ela estava? Eu, no segundo anterior ao baque, não me sabia tão viva.
(*) Escritora