Aylê-Salassié Filgueiras Quintão (*)
Alexandre Quintas Filgueiras Quintão (**)
Quando fala em “transversalidade”(1), a ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, não está blefando; nem o presidente Lula, ao anunciar que vai trazer para o Brasil (Belém) a Conferência Mundial de Mudanças Climáticas (COP-30), em 2024. Eles pretendem recolocar no palco as organizações não governamentais sem fins lucrativos, as ONGs, grandes cabos eleitorais neste mundo, defensoras do chamado “ambientalismo emancipatório” (2).
E o propósito Marina não escondeu: levar Lula a ser indicado ao prêmio Nobel e, quem sabe, ela própria, à condição de candidata à presidência da República em 2027. Afinal, afirmou, nossa causa é universal, a sustentabilidade, e não faz distinção entre capitalistas, nacionalistas, comunistas ou socialistas.
Tentemos entender o cenário meio profético. Certa vez, numa palestra em Londres sobre a questão ambiental, na qual estava presente o príncipe Charles, hoje o rei Carlos III, da Inglaterra, o ambientalista brasileiro José Lutzemberger, surpreendeu o auditório ao concluir sua fala dizendo: “O meio ambiente é uma questão religiosa!” (3)
No Rio Grande do Sul, de onde viera, era já meio mitificado pelas grandes mobilizações ambientais. Convocado por Collor para a recém-criada Secretaria de Meio Ambiente da Presidência da República, ele, já nos seus 70 anos, optou por morar, solitariamente, no Parque Nacional de Brasília (Água Mineral), e ter apenas um motorista que o buscava pela manhã e o deixava de volta no final da tarde. Vivia quase como um ermitão, e seu comportamento assustava, de certa maneira, muita gente, inclusive os servidores ao redor.
Na chefia da Secretaria, de status ministerial, preferia despachar na sede do Ibama, no Setor de Áreas Isoladas Norte (SAIN), onde, antes de iniciar o expediente, fazia uma caminhada silenciosa pelo bosque que circunda a área, sob o olhar curioso e incrédulo da burocracia da Casa.
Suas atitudes pouco comuns, eram vistas, com desconfiança, até como as de alguém emocionalmente instável, por aqueles que não conseguiam entender sua configuração da existência humana, da qualidade de vida e, por conseguinte das políticas públicas.
A reverência à natureza fora desenvolvida ao longo da vida profissional, trabalhando, antes, em uma indústria química. Teria adquirido ali a percepção da relação ambígua dos homens com os princípios biológicos ativos, ocultos na natureza, delineados em ricos biomas e sistemas ecológicos, cadeias das quais ele, como homem (hominídeo), considerava-se parte.
E, assim, existencialmente, a cada dia mais sacralizado, foi se envolvendo com o que o filósofo holandês, Baruch Spinosa, chamava de substância do ambiente natural. Falava holandês, e cultivava o pensamento de seu compatriota, que vivera entre 1632 e 1677, sem qualquer ligação, entretanto, com o budismo. O filósofo chamava atenção para a substancialidade sagrada contida na natureza, na qual identificava a presença de Deus e de seu papel na criação e tutela desse mundo. Distinguia a coisa chamada de natural daquela tratada como artificial. Dizia que as substâncias contidas nas coisas da natureza eram imanentes e, em decorrência, indivisíveis e imutáveis.
Para ele, a natureza seria fruto dessa substância: expressão de uma espiritualidade inerente. Em 1677 escreveu um Tratado à Correção do Intelecto, referindo-se às relações confusas do homem com o ambiente do qual faz parte. Valeu-lhe o banimento do meio judio, do qual descendia.
Segundo mostra J.W.Bayle, filósofo inglês, teria sido por mera modéstia que também Spinosa não criara uma seita com o seu nome. O Deus de Espinosa possuía caráter imanente, ou seja, não estava separado do mundo. Pelo contrário, estava intimamente nele imbricado, configurando uma única coisa: a tal substância.
Deus estaria refletido na harmonia (gestão?), na existência e funcionamento de todas as coisas. A substância ambiental não era algo fragmentário ou passível de ser fragmentado artificialmente no sentido, por exemplo, do utilitarismo, ideia que o judaísmo repassou para este mundo: a natureza a serviço do homem, submissão que, no discurso da Marina, é citado com perspectiva de uma “bioeconomia”.
Daí esta seria uma das ambiguidades a ser digerida do discurso da ministra Marina, para que o Brasil, como um país que abriga enorme diversidade ambiental, possa pretender a liderança de um processo de mudança de paradigmas nas políticas públicas nacionais e internacionais.
Isso se daria a partir do que ela chamou, metodologicamente, de “transversalidade”, aderência governamental ampla a um eixo unificador de sentidos ambientais nas propostas a serem recomendadas por conselhos, ou adotadas por ministérios e empresas públicas e privadas na organização de políticas específicas para a agricultura, energia, indústria, recursos hídricos, ar, ocupação e exploração territorial, populações tradicionais, saúde, cultura e até fiscal.
Vamos ver como a ministra Simone Tebet, do Ministério do Planejamento, se sai desta…
Quando se fala em temas transversais, no caso do meio ambiente, trata-se de uma orientação intangível (substância) que atravessa todas aquelas políticas e atividades públicas cobradas como unificadoras e organizadoras de sentido, agregadora de valores, com o fim de transformá-las, à busca de virtudes novas e compatíveis com o cenário dado.
Não seria algo trivial, para ser banalizado política ou retoricamente. Não se trata apenas de moldar a coisa ou as coisas para adequá-las, de maneira tangível, às demandas, às ideologias partidárias ou do sistema produtivo.
Há, implícito, uma concepção de respeito e sacralidade mesmo no tratamento transversal para as políticas públicas. É daí que, imagina-se, vá surgir o modelo de gestão pública que Lula e Marina profetizam com ar de aparente religiosidade.
(*) Jornalista, professor (ex-guarda florestal do PNB).
(*) Especialista em Gestão e Avaliação de Projetos em Saúde Coletiva