Desde 4 de março de 2020, quando foi decretado no Brasil o estado de emergência nacional, o coronavírus alterou o modo de viver da nossa sociedade em perspectivas jamais imagináveis. Não seria diferente com as relações jurídicas.
No último levantamento realizado pelo Serasa Experian, o número de brasileiros inadimplentes alçou novo recorde da série iniciada em março de 2016. Em junho de 2019 os maus pagadores chegaram a 63,4 milhões2.
Em um cenário pós-pandemia, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que o desemprego deve ser uma realidade nova para quase 25 milhões de pessoas.
No Distrito Federal, uma sondagem da Fecomercio4 expõe que 37,8% dos empresários estão tendo dificuldades com o pagamento de aluguel, salário e impostos.
Não é preciso muito esforço para concluir que haverá substancial aumento no descumprimento de todos os contratos, nos mais diversos tipos de relações jurídicas. É uma dedução óbvia quando se tem em conta o fechamento do comércio, perda de receita e desemprego.
O descumprimento contratual em massa abala a paz social. Em que pese a sensibilidade e empatia, que devem preponderar em situações como a que vivenciamos, o interesse do credor em receber do devedor persiste.
Certamente será corriqueira a hipótese de impossibilidade do devedor em realizar o pagamento, e conflitos dessa natureza costumam chegar ao Judiciário, onde se tem certa uma expectativa de crescimento exponencial do número de ações.
Os meios de comunicação têm noticiado frequentemente a suspensão ou redução do pagamento de aluguéis comerciais e os bancos públicos e privados já adotam uma política de postergação do vencimento das dívidas.
De toda sorte, não há, até o presente, legislação que defina com precisão quais serão os efeitos da pandemia sobre os contratos. O que tem se visto até o presente é que as flexibilizações decorrem de liberalidade do credor ou de intervenção judicial.
Da análise do debate jurídico acerca da suspensão ou mitigação do recebimento de um crédito, preponderam os institutos do “caso fortuito e/ou força maior” e do “inadimplemento por circunstâncias imprevisíveis”.
Sem enfrentamento das discussões doutrinárias a respeito do conceito de caso fortuito e/ou força maior, é unanime o consenso de que se trata de um impedimento transitório, cujo efeito não era possível evitar ou impedir, que impede o cumprimento da obrigação com a qual o devedor se comprometeu.
O fato é que não há em lei a previsão de extinção da obrigação para a referida hipótese. Por exemplo, não pode o locatário se afastar da obrigação do pagamento sob o fundamento de caso fortuito ou de força maior.
O que é possível, nesse caso, é afastar a incidência de juros, multa e honorários de advogado sob o fundamento de que não deu causa ao inadimplemento.
Mas, como dito anteriormente, existem decisões que suspendem o pagamento, que diminuem o valor do aluguel, ou, até mesmo, que extinguem a obrigação.
O outro instituto jurídico, da teoria da imprevisão, foi mitigado pela recente inclusão do artigo 421-A no Código Civil (pela Lei da Liberdade Econômica) que, no inciso III, diz que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
O que o direito busca é fazer valer a força obrigacional da vontade, a prevalência do que foi contratado, a potencialidade do contrato de ser lei entre as partes. Contudo, como toda regra, existem exceções e a imprevisão vem sendo adotada constantemente nesse cenário de pandemia.
A possibilidade de alteração dos termos contratuais está contida no artigo 478 do Código Civil, que autoriza tal excepcionalidade quando a prestação se tornar excessivamente onerosa, em virtude de acontecimentos extraordinários ou imprevisíveis, sendo facultado ao devedor até mesmo o pedido de desfazimento do contrato.
A origem de tal instituto não reflete hipóteses como a que atualmente se verifica, até porque jamais vivenciada em um passado recente. O que se buscava remediar eram desequilíbrios contratuais imprevisíveis, como uma disparada exagerada do dólar, por exemplo.
Porém, não há dúvidas de que a pandemia causada pelo novo coronavirus funciona como fator de desequilíbrio contratual. As circunstâncias de mercado são outras e, por mais que se tenham tomado cuidados, inesperadas.
O que se quer dizer pelas considerações acima, é que é inegável a já constatada possibilidade de intervenção judicial nos contratos. Acontece que tal intercessão deve caminhar no sentido de dar certezas à sociedade, pois é papel fundamental do Judiciário a pacificação social.
Não se pode dizer que há segurança jurídica quando se constata disparidade entre decisões judiciais correspondentes a um mesmo fato. Exemplo disso é a concessão da suspensão do pagamento de aluguéis por alguns juízes e, por outros, não.
A uniformização das decisões judiciais carece de tempo. O escalonamento dos processos, das primeiras às últimas instâncias, para que se proceda uma padronização do entendimento, certamente não ocorrerá no tempo que a pandemia evolui e a sociedade reclama.
Nesse panorama é que a todo tempo surge a necessidade de um projeto de lei que estabeleça diretrizes claras para cumprimento dos contratos. A dificuldade é firmar até onde deve ser a intervenção estatal nos contratos já celebrados.
Tramita em regime de prioridade na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.397, de autoria de deputado Hugo Leal (PSD/RJ). Tal PL traz a possibilidade de uma moratória generalizada.
O projeto suspende automaticamente, por 60 dias, as execuções judiciais vencidas a partir de 20 de março e suspende a decretação de falência, recuperação judicial, vencimentos antecipados de dívidas e incidência de multas.
O objetivo aparente é dar um folego por um prazo de dois meses para que se mantenham as atividades empresariais daqueles empreendedores que não possuem liquidez para suportar o período de estagnação.
De outro lado, não podemos perder de vista que uma moratória para todas as empresas, independentemente do grau de comprometimento de suas finanças pela crise, pode paralisar toda a economia. Pois, ao mesmo tempo que um é devedor, também é credor de outros.
O problema da proposta é que ela cria uma espécie de moratória de 60 dias para todas as empresas, estejam elas muito, pouco ou nada afetadas pela crise.
Possibilidade interessante é a promovida pela Alemanha, que introduziu uma moratória legal de 3 meses para os consumidores e pequenas empresas. A referida lei ainda trouxe regras sobre as relações de aluguel residencial e comercial, impedindo a realização de despejos até o final de junho de 20205.
São muitas as possibilidades e a realidade brasileira, com toda a sua diversidade, carece de uma diretriz do Estado.
Como já dito, a resposta judicial não possui a agilidade necessária para acompanhar os fatos, e a demanda por uma solução persiste, sendo o mais adequado que o subsídio estatal venha por lei, para que se regule na velocidade que a crise impõe e para que se harmonizem os anseios sociais, a permitir um ambiente seguro de negócios.
(*) Vinícius Nóbrega é advogado graduado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), com ênfase em direito privado. É formado em teoria geral do direito público, teoria geral do controle de constitucionalidade e direito processual civil avançado, e é pós-graduando em advocacia empresarial e contratos, todos pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).