O Sistema Único de Saúde é resultado de uma construção política que superou diferenças de toda natureza e que trouxe benefícios indiscutíveis à população brasileira, ainda que tenha suas deficiências. Hoje, ele se vê ameaçado pela dissensão que tomou conta do País nos âmbitos político e social.
Alterações feitas no projeto da Medida Provisória (MP) 890/2019, que cria o Programa Médicos pelo Brasil, e que serão apreciadas pelos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, são potencialmente desastrosas. Além de favorecerem interesses particulares e de mercado em detrimento do interesse público, contrariam o próprio pacto federativo que define a estrutura do SUS.
A estruturação do SUS prevê que é responsabilidade da União coordenar os sistemas de saúde de alta complexidade e de laboratórios públicos, planejar e fiscalizar o SUS em todo o país, além de prover metade dos recursos para financiamento do sistema.
Aos estados cabe ajudar na execução das políticas nacionais, com aplicação de recursos próprios (12% da receita), coordenar e gerenciar sua rede local de serviços de saúde. E aos municípios cabe seu quinhão no financiamento (15% da receita) e garantir os serviços de atenção básica à saúde e prestação de serviços locais com apoio e aporte financeiro de estados e da União, além de planejar, organizar, controlar e avaliar sua rede assistencial local em conformidade com as diretrizes nacionais.
A alteração feita no projeto original do Ministério da Saúde (MS) que permite a estados, municípios ou consórcios criar seus próprios programas “mais médicos”, além de permitir a continuidade dos mesmos vícios e ilegalidades que motivaram a substituição do antigo programa pela nova versão proposta pelo MS rompe com o Pacto Federativo e com o Pacto pela Saúde firmado entre a União, os estados e os municípios.
O pano de fundo para essa tentativa de ruptura, que considero uma irresponsabilidade, é o subfinanciamento do SUS por parte da União e a asfixia que ele causa aos estados e municípios, agravada pelos ajustes fiscais da Emenda Constitucional 95, de 2016, que instituiu o teto dos gastos públicos.
Essa situação e a pressão de grupos que defendem interesses pessoais ou de nichos de mercado acima do interesse público dão margem a tornar a votação da MP 890 um campo de batalha ideológico e de disputa partidária e eleitoral.
Mais do que a questão financeira, esse embate mesquinho, que tomou ares de briga de rua no Brasil atual, está envenenando o debate sobre os rumos da nossa maior política nacional. Na avaliação da proposta, pouco ou nada se está tentando fazer em relação ao subfinaciamento da saúde pública, à sustentabilidade e continuidade do SUS ou à melhoria da assistência à população.
Cálculos dos benefícios eleitorais ou vantagens na disputa política e outros interesses ainda menos republicanos é que parecem definir boa parte dos discursos quando esse é o assunto em questão.
O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo e maior programa de inclusão social já criado neste país. Foi uma construção na qual o ideal de um país solidário com justiça social foi maior do que a polarização entre as ideologias políticas e sociais da época. Não podemos permitir que a intolerância e a radicalização atuais coloquem em risco algo que representa uma das maiores realizações da história desta Nação.