Um dos paradoxos da sinuosa trajetória do Brasil na sua luta incessante pela ascensão ao primeiro mundo é a facilidade com que se incorporam, de forma muitas vezes superficial e até inconsequente, novos conceitos, sem que se tenham superado antigos e sérios problemas.O enorme destaque dado, recentemente, ao Controle Total de Qualidade na Engenharia é, de certa maneira, um exemplo deste fenômeno, pois, embora reconhecendo a relevância e urgência do tema, temos, por outro lado, abordagens específicas relacionadas com a indústria da construção que apontam soluções refinadas, mas, nem de longe, tocam, ou até mesmo evitam, discutir algumas das causas primárias responsáveis pelos inúmeros casos de falta de qualidade nas edificações.
Podemos citar várias dessas causas, mas apenas uma delas, de tão alarmante, é suficiente para introduzir a questão: Pesquisa recente do Departamento de Engenharia Civil da UnB mostra que, em 1992, apenas 10% do volume total de concreto utilizado nas estruturas do Distrito Federal passaram por controle tecnológico de recepção nos níveis exigidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a NB-1418/1992: Preparo, controle e recebimento de concreto. Este controle é a garantia de que o concreto alcança a resistência estipulada no projeto estrutural, sem a qual pode ser comprometida a segurança, durabilidade e a vida útil de uma edificação.
[…] Uma analogia simples da gravidade do problema seria a inexistência de controle dos materiais de solda das turbinas de avião ou da borracha de um pneu de automóvel. […] É oportuno ressaltar que acreditamos não ser esta uma realidade exclusiva do DF e que, provavelmente, prevalece na maior parte do país. […]
Infelizmente, é verídico o episódio, cômico se não fosse trágico, de um construtor que, após repetidos resultados insuficientes da resistência do concreto da sua obra, ameaçou para os ensaios futuros só pagar o laboratório caso os resultados fossem satisfatórios. Imaginemos, por exemplo, se algum cliente se exporia ao ridículo de querer pagar a um laboratório de análises clínicas somente se os exames de sangue resultassem negativos! […]
É difícil discutir qualidade sem se referir ao fato de que, salvo exigências específicas de certos órgãos públicos, para se obter o alvará de construção de uma obra junto ao GDF são exigidos como documentação técnica apenas o Projeto de Arquitetura e a Planta de Cargas na Fundação. Somente na requisição do ‘Habite-se’ é solicitada a apresentação dos demais projetos de Estruturas e Instalações, apenas carimbados pelo CREA para anotação da responsabilidade técnica.
Sabemos que em inúmeras obras os projetos são feitos apenas por desenhistas, não qualificados para tanto, tendo agora ao seu dispor potentes, e muito perigosos se mal usados, pacotes computacionais. […] Não seria difícil […] a exigência pelos órgãos competentes […], a obrigatoriedade de entrega das memórias de cálculo dos projetos.
Também já é hora de se discutir […], no início da obra, o pagamento de cobertura securitária, o que já existe na maioria dos países desenvolvidos. Este ‘seguro-garantia’ da construção foi proposto, há mais de um ano, pelo Instituto Brasileiro de Tecnologia e Qualidade na Construção (ITQC), ressaltando a entidade que ele \”não pode nem deve ser visto de forma igual àquele convencionalmente praticado pelas seguradoras […].\”
Obviamente, o custo de tal seguro deve ser inversamente proporcional ao gabarito de todas as equipes técnicas e administrativas de projeto e execução. Isto é, paga mais quem for incompetente, o que vai ser julgado não por um órgão público, mas pelas equipes técnicas das seguradoras, que deverão organizar cadastros do desempenho de profissionais e empresas.
Afinal, não estamos, pelo menos no discurso, em um país disposto a modernizar-se e tirar o peso do estado sobre a atividade econômica,deixando, neste caso de forma efetiva, o tão falado mercado regular a produtividade e competitividade? […].
Reconhecendo novamente a relevância da discussão sobre Qualidade Total na Engenharia, queremos deixar aqui a mensagem de que é difícil, ou talvez impossível, que ela seja alcançada sem se alterar o quadro relativo a problemas tão básicos que afetam de forma negativa e comprometedora a nossa profissão.
Mais ainda: Fica aqui um apelo às entidades e órgãos de classe da área para que se integrem, e até liderem, a superação de males crônicos do nosso país, o que, na realidade, nada mais é do que uma extensão da luta pela cidadania e melhores condições de vida e de trabalho para a sociedade.
Esclarecimento: este artigo foi publicado originalmente no Informativo CREA/DF, em julho de 1994 (trechos secundários omitidos). Após o desabamento do viaduto no Eixo Rodoviário Sul em Brasília, em 6/2/2018, o autor decidiu escrever sobre o tema, no intuito de esclarecer certas questões, quando encontrou este texto, que entendeu ser atual. Espera-se que, 24 anos depois, os conceitos tenham uma repercussão mais afirmativa, mesmo reconhecendo os enormes avanços no período!
(*) Professor aposentado do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da UnB