Cristovam Buarque (*)
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O Brasil passou a acreditar que 22 milhões de brasileiros teriam saído da pobreza extrema. Este discurso se baseava na ideia de que essas famílias passaram a receber complemento de renda suficiente para ultrapassar a linha de R$ 70 por pessoa por mês. Tal visão aritmética da pobreza não resiste a uma análise social que efetivamente cuide da pobreza.
Nada indica que uma família sem adequada provisão de escola, saúde, cultura, segurança, moradia, água e esgoto saia da pobreza apenas porque pode comprar aproximadamente oito pães por pessoa a cada dia. A linha da pobreza não deve ser horizontal, separando quem tem mais de R$ 2,33 por dia e quem não tem, mas uma linha vertical, separando quem tem e quem não tem acesso aos bens e serviços essenciais.
É como se na época da escravidão o povo fosse convencido de que o país era menos escravocrata apenas porque o proprietário gastava mais dinheiro na alimentação de seus escravos. A separação entre o escravo e o trabalhador livre não era uma linha horizontal definida aritmeticamente pela quantidade de comida que recebia, mas uma linha vertical separando quem tinha e quem não tinha liberdade.
Hoje, a linha da pobreza efetiva deve ser determinada por quem tem e por quem não tem acesso aos bens e serviços essenciais. E neste sentido, o Brasil não está avançando na educação, na saúde, no transporte e na segurança. Mesmo dentro de sua lógica, o argumento aritmético fica frágil quando observarmos como a renda dos pobres avança e regride dependendo da inflação. Entre março de 2011 e abril deste ano, a inflação medida pelo INPC foi de 19,6%, fazendo com que cerca de três milhões de brasileiros tenham regredido abaixo da linha aritmética da pobreza extrema.
Pela paridade do poder de compra, em março de 2011, o benefício básico do Bolsa Família equivalia a US$ 1,25 por pessoa/dia, valor adotado pela ONU como abaixo da linha da qual se caracteriza a pobreza extrema. Com a desvalorização cambial, houve uma perda de poder aquisitivo de 20%. Portanto, cerca de quatro milhões de brasileiros estão de volta à pobreza (mesmo considerando o aumento de 10% do salário mínimo).
Pelo conceito social, não aritmético, de pobreza, pelo menos 22 milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza extrema, número que não diminuiu nos últimos anos.
Cento e trinta e seis anos atrás, o Brasil não aumentou a quantidade de comida nos pratos dos escravos, fez a Lei Áurea que os libertou. A Lei Áurea não foi um argumento aritmético, mas social. Por isso, ela se fez permanente, e nós a comemoramos nesta semana, sem recaídas ocasionadas pela inflação ou pelo câmbio, sem a pobreza aritmética.
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(*) Professor da UnB e senador pelo PDT-DF.