Por: Mário Pontes, Escritor e jornalista
No verão europeu de 1946, o romancista francês Albert Camus – que receberia o Prêmio Nobel de Literatura em 1967 – deixava Paris a fim de passar uma temporada na Vendéia (noroeste da França), em casa do conhecido poeta e amigo René Char. O objetivo da viagem era descansar carregando pedras; ou seja, terminar a criação de um livro ao qual sua mente se dedicava desde os amargos dias da resistência civil – mas o quanto possível armada – aos ocupantes germânico-hitleristas. Concluído pouco antes do final daquelas férias de chumbo, o romance recebeu o título de La Peste (A Peste), e foi publicado no ano seguinte pela Gallimard, editora francesa de prestígio internacional.
A lembrança de como o livro foi escrito nada tem de ociosa. Pois no momento em que o invasor recorria à brutalidade máxima para assegurar seu poder – tortura para começar e enforcamento para fechar o círculo de ferro – aos ainda pouco numerosos membros da Resistência, era natural que o temor fosse um pesado e escuro manto de neblina, capaz de desorientar consciências e calar as vozes opositoras. Mas, embora os meios de divulgação e marketing fossem fracos, quando comparados aos de hoje, A Peste não tardou a transformar-se em um autêntico sucesso internacional, cuja qualidade ninguém se atreveu a pôr em dúvida.
AOS 34 ANOS de idade, Camus – pied noir, ou seja branco nascido na Argélia, quando o país norte-africano ainda era colônia francesa – já se tornara respeitado nos círculos intelectuais parisienses, sobretudo pela imagem sóbria e a reconhecida integridade moral. Como escritor, havia publicado umas poucas obras de ficção, um punhado de ensaios filosóficos – capazes de gerar discussões; e alguns textos dramáticos de fortuna ainda um tanto incerta no palco. Parte do público o conhecia quase só como editor político do Combat, jornal nascido nas ecumênicas catacumbas da Resistência aos ocupantes nazistas.
Realidade e ficção – Órfão de pai morto na I Guerra Mundial, até sua primeira juventude Camus havia conhecido a pobreza e experimentado dificuldades numerosas, algumas decerto bem amargas. Mas agora podia finalmente respirar: tornar-se dono de uma casa, obter licença para comprar um automóvel (produto então quase tão raro quanto o caviar) e ter uma renda suficiente para livrar-se do jornalismo como ganha-pão.
As tiragens de alguns dos seus livros de ficção e ideias haviam crescido em termos das dezenas de milhares. As traduções, por sua vez, agora frequentemente se davam em cadeia. Em conformidade com tais circunstâncias, poucos meses depois do aparecimento do livro o nome de Camus já era cogitado para o Prêmio Nobel, embora só uns dez anos mais tarde fosse recebê-lo.
A Peste tornou-se um marco da literatura de ficção no século XX, mas não por motivos semelhantes aos que levaram ao topo Em busca do tempo perdido, Ulisses, O processo, A morte de Virgílio ou mesmo A montanha mágica, ficções de grandeza reconhecida pela crítica internacional. O romance de Camus não carregava consigo a intenção de revolucionar em termos de estilo. Era uma narrativa clássica, como se apressou a batizá-lo a crítica. Na verdade, porém, o que o distinguia entre as tantas obras importantes que a literatura de sua época vinha produzindo era o perfeito casamento das imagens de Camus com aquilo que pretendia dizer ao leitor.
O propósito de Camus torna-se claro desde a epígrafe, em que Defoe proclama a validade de se retratar um fato real mediante a descrição de outro que não aconteceu. Assim, para descrever a ocorrência de uma epidemia que durante meses aprisiona e dizima a população da cidade de Oran, no litoral da Argélia, Camus usa a estrutura do um romance de menos de trezentas páginas como instrumento de história essencial da mais terrível das várias pestes políticas que assolaram a humanidade neste século: o nazismo, o sistema hitlerista e a catástrofe da guerra com a qual o ditador julgava possível tornar realidade a construção de um império capaz de durar mil anos.
Duas dimensões – Nessa primeira dimensão do livro, metafórica por excelência, o leitor será tomado, sem demora pelo fascínio, a admiração e o prazer que lhe são oferecidos a cada nova página: a começar ela precisão das analogias. Camus recorre seguidamente aos paralelismos a fim de representar o fluxo e o refluxo da maré fascista, com a detalhada descrição das numerosas situações que se encadeiam no curso da evolução da peste, das suas primeiras manifestações ao pique de sua violência destruidora, e daí para a sua lenta retirada e desaparecimento.
A segunda dimensão, embora metafórica, é aquela em que o espaço narrativo abre-se à reflexão sobre a matéria romanceada. Aqui, o processo de criação de imagens aplica-se à grande variedade de reações das personagens ao fenômeno que por um longo período mantém suas vidas pendentes de um fio dramaticamente precário.
As analogias continuam, mas trabalhando agora os sentimentos, individuais e coletivos: a descrença inicial na ocorrência da peste, a cegueira autoimposta quando a epidemia começa a ceifar vidas, as dificuldades para aceitar as medidas indispensáveis a um estado de calamidade, a angústia do aprisionamento, mas também a lenta mudança das atitudes passivas – ou simplesmente desesperadas – para os comportamentos mais positivos, mais razoáveis e menos egoístas.
A dimensão do romance atende a mais um dos propósitos de Camus, anunciado por um dos seus pretensos narradores: o de fazer história com aqueles que não têm história. E de fato não é necessariamente da boca de intelectuais, nem dos que socialmente contam, que saem as primeiras perguntas pertinentes: A peste é um castigo, um vômito da terra? Por que ela sempre encontra os homens desprevenidos? Por que só a pressão do medo consegue abrir caminho para a reflexão? Ou, em sentido inverso: por que a peste também pode acordar a solidariedade e chegar mesmo a patrocinar o amor?
O Mal – Camus, no entanto, estava longe de ser um anti-intelectual, e por isso reservou para dois intelectuais a discussão essencial de A Peste: a primeira sobre o mal ou O Mal e consequentemente sobre a morte (ou A Morte). Uma vez mais, o percurso de Camus não é o que leva de uma abstração a outra abstração. Foi de realidades muito concretas que ele extraiu suas poderosas imagens.
Poderia, por exemplo, ter criado um décor ideal para o seu drama, mas preferiu, como cenário, a cidade de Oran, onde cada pedra era testemunha de um período de sua vida. A separação dos amantes pela peste nasce da experiência com sua própria mulher, obrigada a esperá-lo na Argélia enquanto ele se via isolado na França ocupada pelos nazistas. O médico Rieux tem muito de alter ego de Camus. E o padre Paneloux, que divide com Rieux a condição de protagonista, parece inspirado, pelo menos em parte, na figura do jovem poeta cristão René Leynaud, seu companheiro de resistência, fuzilado pela Gestapo pouco antes da libertação.
O Dr. Rieux, ateu, e o Pe. Paneloux, católico, são dois santos, para quem nada é importante a não ser o tudo. Por isso, pode-se dizer que o coração de A Peste é o encontro dos dois, precariamente aliados na luta contra aquele desafio à vida, que embora transitória pode e deve ser uma completude. Ambos, cada um à sua maneira, detestem a Morte, à qual, no entanto, expõem-se com a máxima radicalidade.
Para os dois o Mal é incompreensível, mas nenhum conseguirá fazer o outro crer que se trata ou da expressão maior do absurdo ou de uma necessidade inexplicável. Há momentos – alguns, todos? – em que não importa tentar descobrir o que é o mal, mas agir contra ele (ou Ele): “Paneloux estendeu-lhe a mão e disse com tristeza: – E contudo não o convenci. – Que importância tem isso? respondeu Rieux. – Como vê – disse, evitando fixá-lo –, agora nem Deus pode nos separar”.
Humanismo essencial
Passados tantos anos, ainda é difícil ler A Peste sem privilegiar o seu significado. E talvez isso continue sempre impossível, ao menos para aqueles que neste século ou nos séculos vindouros, hajam passado por uma peste. O fato é que, para muitos, ainda é inconcebível que alguém leia o relato da intervenção de Paneloux na luta contra a peste sem valorizar a sua aposta pascaliana; ou que acompanhe Rieux em seu longo duelo com a Morte e não se comova com o seu humanismo essencial; ou não se sinta perplexo diante da estranha convivência de sua crença “de que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar” com a certeza de que “a peste não morre nem desaparece nunca”, e, pior ainda, que os homens estarão sempre entregues às ilusões que os levarão a hesitar e hesitar antes de reunirem para combatê-la
A Peste, de Albert Camus. Tradução de Valerie Rumjanek. Record (9a. edição), 270 páginas.