Há 28 anos, a baiana Rita de Cássia, 33 anos, desembarcava em Brasília com a esperança de ter uma chance de melhorar de vida na terra das oportunidades, como é conhecida a capital federal para grande parte dos brasileiros. Quase três décadas depois, o máximo que a cidadã de Barreiras, no Oeste da Bahia, conseguiu foi se “profissionalizar” como catadora de lixo e inservíveis. Nem casa pode comprar. Mora de forma improvisada sob uma casa de tábua e papelão numa invasão vizinha aos palácios do Planalto e da Alvorada. É tudo o que ela tem na vida.
Rita foi para lá porque, em julho do ano passado, o pouco que amealhara até então lhe foi tirado por órgãos de fiscalização do solo ligados ao Governo do Distrito Federal. Equipes da Secretaria DF Legal retiraram a ocupação irregular onde ela vivia, numa outra área também próxima ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Resiliente e necessitada, ela se transferiu para outra área que fica a 1km do Planalto, onde está até hoje.
Mas, no dia 22 de março deste ano, Rita passou por novas agruras quando outra expedição de forças distritais desembarcou na região para desfazer o acampamento onde sua família e mais 33 clãs de catadores de papel moram em meio à pobreza. Ao ver as cenas na televisão, muita gente se sensibilizou, ainda mais porque o desemprego acumulado pela pandemia de covid-19 tem aumentado o número de pessoas passando fome no mundo – e não é diferente no Brasil e em Brasília. Num gesto de coragem e comiseração, estudantes da Universidade de Brasília (UnB) deram um tempo nos estudos e se juntaram ao grupo que resiste à iminente derrubada dos barracos erguidos em áreas tão nobres.
À imagem e semelhança de Boulos
Mas, mesmo em meio ao caos, há sempre gente com outro tipo de intenção. Gente que se locupleta da desgraça alheia.
Integrantes do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) resolveram transformar o sofrimento daquelas pessoas em bandeira política. Ao melhor estilo Guilherme Boulos – candidato derrotado à Prefeitura de São Paulo – pelo menos dois políticos filiados à legenda colaram sua imagem às dezenas de rostos de pessoas simples que buscam apenas um lugar para morar.
A deputada federal Talíria Petrone (RJ) foi uma delas. Ela esteve no assentamento após a nova retirada do DF Legal no dia 22 de março. Discursou, prometeu apoio, falou para veículos de imprensa como se líder do movimento fosse, e desapareceu. Outro que também tirou uma lasquinha da pauta pronta foi o socioambientalista e ativista dos direitos humanos Thiago Ávila, 34 anos.
Este, sim, vestiu a máscara de Boulos. Belicoso como o destaque nacional do PSol na política, Thiago chegou a ser preso na tarde de 25 de março (quinta-feira), após tentar impedir uma nova ação do DF Legal na ocupação de catadores de recicláveis próximo ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
Deboche – Munido de uma liminar assinada pela juíza Mara Silda Nunes de Almeida, de terça-feira (23/3), impedindo a ação do GDF no local durante o período de pandemia, ele desacatou policiais e acabou algemado. Seus crimes relatados pela polícia foram desacato, calúnia e obstrução.
Debochado, Thiago gravava um vídeo, postado no Instagram posteriormente, sobre a ação que julgava ser “truculenta” da polícia, que cumpria ordem do GDF. O socioambientalista acabou levado para a 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul) e liberado em seguida.
Carona atrás de holofotes
Parlamentares do PSol aproveitaram para pegar carona no fato. O deputado distrital Fábio Felix (PSol) usou sua assessoria jurídica para defender Thiago. Aos jornais, disse: “O subsecretário do DF deu uma voz de prisão sem nenhum desacato. Está tudo filmado. Nós vamos, inclusive, representar para que esse subsecretário possa responder pela atitude ilegal que está fazendo. Não é porque uma pessoa é uma autoridade que pode fazer tudo. E nós vamos tomar todas as medidas necessárias”.
Incansável na busca por holofotes, Thiago apareceu na manhã de terça-feira (6/4), vestindo uma roupa simples, suja, tentando se parecer com um dos moradores do acampamento improvisado. A encenação parecia convincente. Tanto que foi encontrado em cima do telhado da Escolinha do Cerrado, feita de madeira pelos próprios ocupantes que contavam com aulas voluntárias de professores. A mesma que o ativista e a deputada Talíria Petrone abraçaram, juntamente com os moradores, num gesto de proteção contra a derrubada.
Liderança não reconhecida
Thiago foi avisado sobre a presença da equipe do Brasília Capital por uma assessora do Psol. O candidato a deputado distrital pelo partido em 2018 conversou com a reportagem. Falando como líder do grupo das famílias acampadas, apesar de os catadores afirmarem que não há liderança instituída ali, Thiago diz que sua presença se deve ao fato de estar sensibilizado com a causa daquelas pessoas. Afirma que só sairá do local quando todas ganharem sua casa do governo local.
“Tem gente que mora aqui desde 1976 e nunca ganhou lote. A gente quer que elas sejam assentadas e pare a violência. A solução de moradia pode ser de médio prazo. A gente sabe, mas o governo não tem dado nenhum aceno sobre essa situação. Mesmo com toda guerra que teve aqui, o governo só fala: ‘abrigo’.
Abrigo é algo provisório. Daqui a três meses, eles vão estar na mesma situação que agora. Então, no fim das contas, ninguém quer aglomerar. O que estamos reivindicando é que o governo pare com as derrubadas”, cobra ele, tentando politizar o caso, ao frisar que o assentamente está a 1km do Palácio do Planalto.
No meio do fogo cruzado entre DF Legal e PSol – o primeiro para ver aquela área livre de catadores e o segundo para conseguir holofotes na mídia –, Rita de Cássia e outras dezenas de pessoas querem apenas chamar a atenção das autoridades responsáveis por programas sociais, como o de moradia popular, para a sua situação.