A Câmara Legislativa aprovou, semana passada, em primeiro turno, lei que estabelece a redução das mensalidades escolares no Distrito Federal durante a crise da Covid-19. A previsão é de que o segundo turno seja votado nesta terça-feira (7). Mas é um debate inócuo, porque o tema não é atribuição daquela Casa. E não é de hoje que, por esse tipo de procedimento, a Câmara do DF recebe diversos apelidos pelos operadores do direito e pela mídia, entre eles, o de “Casa dos Horrores”.
Dados que podem ser consultados nas jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Especial do TJDFT apontam que, ano a ano, a maioria das leis aprovadas pela Câmara Legislativa é, parcial ou totalmente, inconstitucional, conforme a tabela abaixo:
Os números correspondem apenas sobre a inconstitucionalidade total de Leis Distritais, não incluindo outras inconstitucionalidades parciais que, se for fazer o levantamento, pode-se encontrar mais de mil normas inconstitucionais, entre leis, leis complementares, decretos legislativos, resoluções.
Ano – 1993
Ano – 2002
Ano – 2011
08 inconstitucionais
24 inconstitucionais
06 inconstitucionais
Ano – 1994
Ano – 2003
Ano – 2012
07 inconstitucionais
14 inconstitucionais
13 inconstitucionais
Ano – 1995
Ano – 2004
Ano – 2013
09 inconstitucionais
26 inconstitucionais
11 inconstitucionais
Ano – 1996
Ano – 2005
Ano – 2014
33 inconstitucionais
39 inconstitucionais
06 inconstitucionais
Ano – 1997
Ano – 2006
Ano – 2015
84 inconstitucionais
20 inconstitucionais
13 inconstitucionais
Ano – 1998
Ano – 2007
Ano – 2016
50 inconstitucionais
04 inconstitucionais
26 inconstitucionais
Ano – 1999
Ano – 2008
Ano – 2017
12 inconstitucionais
12 inconstitucionais
15 inconstitucionais
Ano – 2000
Ano – 2009
Ano – 2018
05 inconstitucionais
03 inconstitucionais
04 inconstitucionais
Ano – 2001
Ano – 2010
Ano – 2019
13 inconstitucionais
03 inconstitucionais
02 inconstitucionais
Leis Distritais declaradas totalmente inconstitucionais: De 1993 a 2019: 462
Denota que a Consultoria Legislativa da CLDF não é consultada à análise de constitucionalidade das normas apresentadas pelos deputados distritais. E isso, infelizmente, não há de parar, uma vez que os parlamentares, a fim de jogar o conteúdo para a plateia, seus eleitores, apresentam proposições inconstitucionais, desrespeitando a Consultoria da Casa, bem como as diversas ADIs que declaram usurpação de competência da Câmara Legislativa do DF.
O projeto de lei, por meio de substitutivo, aprovado em primeiro turno, que estabelece a obrigatoriedade de as instituições de ensino particulares e de cursos de línguas estrangeiras do DF reduzir, no mínimo, 30% a mensalidade devido a pandemia do novo coronavírus é totalmente inconstitucional. Vejamos:
O projeto de lei preconiza, em seu artigo 1º:
“Art. 1º Ficam as instituições de ensino particulares, tanto da educação básica como da superior, e os cursos de línguas estrangeiras, que adotem a modalidade presencial de ensino, obrigadas a reduzirem as suas mensalidades em, no mínimo, 30% (trinta por cento), durante o período de suspensão das atividades educacionais em razão das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus (COVID-19), instituídas pelo Governo do Distrito Federal.”
Ora, em 12.08.2009, o STF, mediante ADI 1.042-5/DF, declarou totalmente inconstitucional a Lei nº 670, de 2 de março de 1994, que dispunha sobre a cobrança de anuidades, mensalidades, taxas e outros encargos educacionais e dá outras providências, conforme ementa assim estabelecida em acórdão do STF:
“EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação Direta. Lei nº 670, de 02 de março de 1994, do Distrito Federal. Cobrança de anuidades escolares. Natureza das normas que versam sobre contraprestação de serviços educacionais. Tema próprio de contratos. Direito Civil. Usurpação de competência privativa da União. Ofensa ao art. 22, I, da CF. Vício formal caracterizado. Ação julgada procedente. Precedente. É inconstitucional norma do Estado ou do DF sobre obrigações ou outros aspectos típicos de contratos de prestação de serviços escolares ou educacionais.
(ADI 1042, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 12/08/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-02 PP-00335 RTJ VOL-00212-01 PP-00011).”
Conforme o julgado, o STF entendeu que há usurpação de competência privativa da União, em total afronta ao artigo 22, I, da CF, que assim estabelece:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
Como se nota do texto constitucional, preconiza que toda matéria que envolve direito civil, compete exclusivamente à União e não aos Estados, Municípios e o Distrito Federal, visto que, em caráter geral, o projeto aprovado pela CLDF, em primeiro turno, trata de direito civil, contraprestação contratual, justamente o que a Constituição Federal busca evitar, que os Estados não tratem de normas diferentes sobre o mesmo tipo de contrato, a fim de não criar uma desarmonia em nosso ordenamento jurídico.
O Direito é uma ciência jurídica, composto por diversas ciências, que segue uma lógica, a fim de não cair em paralogismo jurídico, para que a justiça seja alcançada.
Dessa forma, como há legislação civil para proteger a relação contratual entre estudantes e instituições de ensino, bem como toda a área de consumo e de prestação de serviços, o DF não tem competência para legislar sobre mensalidade escolar, até porque há normas específicas que tratam sobre contrato de prestação de serviços de instituições de ensino, conforme Lei Federal nº 9.870/99, que versa sobre o valor total das anuidades escolares.
“Art. 1º O valor das anuidades ou das semestralidades escolares do ensino pré-escolar, fundamental, médio e superior, será contratado, nos termos desta Lei, no ato da matrícula ou da sua renovação, entre o estabelecimento de ensino e o aluno, o pai do aluno ou responsável.”
O § 4º deste mesmo artigo assim estabelece:
“§ 4º O valor total, anual ou semestral, apurado na forma dos parágrafos precedentes terá vigência por um ano e será dividido em doze ou seis parcelas mensais iguais, facultada a apresentação de planos de pagamento alternativos, desde que não excedam ao valor total anual ou semestral apurado na forma dos parágrafos anteriores.”
A leitura desses dispositivos demonstra que a contratação dos serviços educacionais é feita com relação a um período letivo completo, anual ou semestral, importando assim que, ao seu final, todas as atividades previstas e contratadas tenham sido efetivamente oferecidas e realizadas. A divisão mensal refere-se unicamente ao pagamento dos valores acordados, não havendo necessária correspondência proporcional na prestação dos serviços a cada mês.
Para sanar ou reparar inadequações na prestação de serviços, inclusive os educacionais, já estão devidamente previstas as medidas necessárias, na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor. Observe-se nesta Lei especialmente o art. 14, que trata da prestação defeituosa de serviços; e o art. 20, que versa sobre as exigências que o consumidor pode fazer, em face de impropriedades no serviço prestado.
O consumidor está protegido para requerer, seja extrajudicialmente ou judicialmente, a reexecução dos serviços, sem custo adicional, a restituição imediata da quantia paga, atualizada, abatimento proporcional do preço da mensalidade.
Assim, o projeto de lei aprovado na Câmara Legislativa, que torna obrigatória a redução em, no mínimo, 30% das mensalidades em instituições de ensino particulares, é completamente inconstitucional, em razão de vício formal (não é competente para legislar sobre matéria de direito civil, de caráter geral, a conteúdo de contrato).
Ainda, não se pode aventar, pelo menos desde 2005, que tema relacionado a contratos tem relação de competência concorrente (art. 24, IX, da CF), visto que a ADI 1007/PE, em tema que se vincula direta com o direito civil, conforme julgado do STF:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.989/93 DO ESTADO DE PERNAMBUCO. EDUCAÇÃO: SERVIÇO PÚBLICO NÃO PRIVATIVO. MENSALIDADES ESCOLARES. FIXAÇÃO DA DATA DE VENCIMENTO. MATÉRIA DE DIREITO CONTRATUAL. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. Os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser desenvolvidos pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização.
2. Nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição do Brasil, compete à União legislar sobre direito civil.
3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
(ADI 1007, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2005, DJ 24-02-2006 PP-00005 EMENT VOL-02222-01 PP-00007).”
Lembro ainda que o Ministério Público, em relação às mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, pode impugnar, por via de ação civil pública, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.
Não esqueçamos que nossa jurisprudência aplica em suas decisões a teoria da imprevisão, o que se aplica perfeitamente nesta crise sem precedente, com esteio no texto Constitucional, Código de Defesa do Consumidor e jurisprudência dos tribunais superiores.
O CDC, que regulamenta o direito fundamental de proteção do consumidor (art. 5°, inciso XXXII, da CF) e incide nos contratos bancários, conforme artigo 3°, § 2°, da Lei n.°8.078/90, e verbete n.° 297 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, tem dispositivos que alcançam também os contratos em instituições de ensino particulares, visto que seu artigo 6°, V, incorpora a teoria do rompimento da base objetiva do contrato, expressamente estabelece, como direito básico do consumidor, a revisão de cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Com isso, o consumidor pode requerer a suspensão da exigibilidade das prestações do contrato com prazo determinado, enquanto perdurar o Decreto de Calamidade Pública, bem como sobre seus efeitos futuros. E, para que não ocorra um colapso de processos no Judiciário, o Senado Federal aprovou Projeto de Lei nº 1.179/2020, que “dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (SARS-Covid-19)”, a fim de proteger as relações jurídicas entre contratante e contratado.
Por fim, sugerimos aos deputados distritais utilizarem o instrumento correto para a elaboração de proposições, quando estas forem de competência da União, a saber: Indicação (espécie de proposição pela qual o parlamentar sugere a outro Poder a adoção de providência, a realização de ato administrativo ou de gestão, ou o envio de projeto sobre matéria de sua iniciativa), para que os cidadãos brasilienses não sejam iludidos e não se percam na falsa esperança de que terão abatimentos nas mensalidades escolares.
(*) Advogado e assessor em processo legislativo na Câmara dos Deputados