Enquanto a maioria dos segmentos de atividades profissionais e empresariais lutou para continuar existindo, os planos de saúde tiveram um lucro financeiro recorde acumulado em R$ 15,9 bilhões até o terceiro trimestre de 2020. Para comparação, é bom ter em mente que o ganho financeiro no mesmo período de 2019 foi de R$ 9,2 bilhões. Um aumento de lucros de 66%, enquanto a economia do país e os salários naufragam.
Como isso aconteceu? Os usuários dos planos pagaram mensalidades, mas não foram aos consultórios, deixaram de fazer exames e cirurgias em função da pandemia da covid-19. Eos médicos e demais prestadores de serviço, por sua vez, não foram remunerados. Foi um ganho baseado em inércia e com reajustes mantidos por previsão contratual.
A perspectiva para 2021 é ainda melhor para os planos de saúde, mas nada boa para os usuários deles: reajustes podem representar aumentos de 25% a até mais que 100% das mensalidades praticadas até dezembro do ano passado.
Isso porque, a partir de janeiro, o usuário vai ter incorporado à sua mensalidade o reajuste suspenso em agosto do ano passado por 120 dias;as parcelas do reajuste suspensas parceladas em 12 vezes; e ainda o reajuste anual e por mudança de faixa etária referente a 2021, a partir da data de aniversário do contrato.
Embora as operadoras digam que os dados referentes ao lucro sejam parciais e que houve aumento da procura por atendimento no trimestre seguinte, mesmo havendo alguma redução, o lucro ainda será recorde. O aumento da demanda só vai justificar o índice de reajuste deste ano, que é baseado na chamada “sinistralidade”, ou simplesmente pelo quanto o serviço é usado no período de um ano.
Para os contratos individuais e familiares, que correspondem a menos que um quinto do total de beneficiários de planos de saúde (em torno de 47 milhões de vidas), o índice é definido pela Agência Nacional de Saúde (ANS) e ficou em 8,4%. Os reajustes dos planos de grupos empresariais ou por adesão sempre são maiores, o que não será diferente este ano.
O aumento vai afetar de forma pesada os orçamentos das famílias ou simplesmente vai incapacitar a manutenção dos planos. Até para mudar para um mais barato, os usuários que não tiverem capacidade financeira de arcar com o aumento vão ter que cumprir novos prazos de carência e não terão acesso à mesma oferta de serviços.
Daí já se prevê duas consequências: uma é o aumento de demandas judiciais – a questão pode vir a ser mais um assunto em que o Supremo Tribunal Federal acabe intervindo. A outra é o aumento da demanda por atendimento no SUS, que já estará, se não colapsado, sobrecarregado com o atendimento represado durante a pandemia, quando a imensa maioria das cirurgias e tratamentos eletivos ficou suspensa.
Durante a pandemia, a situação de pacientes crônicos ou que já aguardavam procedimentos cirúrgicos não melhorou. Eles, no máximo, foram estabilizados ou assistiram impotentes ao agravamento de sua condição.
Com o desequilíbrio no setor da saúde suplementar, o lucro das empresas em descompasso com a realidade de usuários, prestadores de serviço, da saúde pública e do próprio conjunto da economia pode significar aumento de despesa (ou de desassistência) no SUS e no sistema Judiciário.
Sem o financiamento suficiente, o SUS volta a ser vilão e os planos de saúde seguem como um sonho de consumo da população e um oásis imaginário, uma miragem de prestação de assistência em saúde.
Essa situação merece atenção da área econômica e do Ministério da Saúde antes que se torne um novo drama. A pandemia nos colocou em uma situação de excepcionalidade e os planos de saúde devem, como todo o conjunto da população e das instituições, dar o seu quinhão de sacrifício pelo bem da coletividade.
O Estado, no entanto, não precisa intervir diretamente no mercado de planos de saúde ou da assistência privada para controlar preços ou impor índices de reajuste. O SUS, com financiamento adequado, gestão competente e transparente, e padrão de atendimento competitivo com as instituições de mercado, é a melhor ferramenta de regulação, de promoção de equidade e forma de controle natural da ganância de empresas que colocam o lucro acima das necessidades coletivas.