Sem os palcos dos bares, dos salões e salas dos espaços culturais e das tradicionais feiras do livro, o mundo da literatura, assim como o da arte em geral, sobrevive nas vitrines virtuais. Seja no YouTube, no Instagram ou no Facebook, as lives são constantes e disputam as atenções do público.
Com tanta oferta, de lançamentos de livros a saraus, há quem pense em oferecer algo a mais para se diferenciar no amplo e democrático universo digital. É o caso do programa “Os Três Mal-Amados”, levado ao ar, atualmente, às terças-feiras, às 20h, pelos inventivos poetas Jorge Amâncio, Luciana Barreto e Josafá Santana, e apoiadores que se juntam ao trio.
“A ideia de fazer uma live semanal trazia vários desafios: ser interessante e diferenciada, porque sabíamos que os amantes da poesia não são muitos”, observa Amâncio, físico e poeta. Ele lembra que o título do poema em prosa de João Cabral de Melo Neto, escrito em 1943, “provocativo e insinuante, foi escolhido para o nome do programa: Os Três Mal-Amados”.
Ao mesmo tempo, os idealizadores Jorge Amâncio, Fernando Freire e Josafá Santana criaram grupos no Facebook e no Youtube, redes que transmitem as lives, com a mesma denominação. A estreia foi no dia 14 de abril de 2020, em pleno avanço da pandemia do coronavírus, com debate sobre a “Geração Beat”.
No mesmo ano, o grupo realizou 15 bate-papos temáticos e outros unicamente sobre poesia. Até o momento, foram levadas ao ar 55 lives. A que teve maior audiência foi “Poesia, Feminismo e Empoderamento”, atacada por hackers em plena apresentação. A poesia do coletivo “Mulherio das Letras” também atraiu grande público.
Espaço democrático – Para o professor e poeta Josafá Santana, o programa está em evidência justamente “por ser um espaço democrático de debate e divulgação da poesia e dos poetas em toda sua dimensão e complexidade, não somente no contexto de Brasília”. O que vem suprir a carência da poesia “de dizer mais do que diz, sem dizer mais do que está dito”.
Fernando Freire arremata: “O grupo Os Três Mal-Amados tem realizado um trabalho em prol da poesia e dos poetas, cujo formato pouco se encontrava nas redes sociais, nascendo da necessidade de se gritar e divulgar a poesia”, mostrando a importância do poeta, “muitas vezes alvo do descrédito e da ignorância de um país que pouco lê”.
Hoje, são cinco mal-amados; para muitos, bem-amados: Jorge Amâncio, Fernando Freire, Josafá Santana, Luciana Barreto e Marli Froes. Todas as terças-feiras, eles entrevistam um poeta ou grupos de poetas, numa espécie de roda-viva da poesia. Ali, não se recita só poemas. O convidado é incitado a falar sobre si, sobre o que constitui a matéria da poesia, os caminhos, as novidades e o futuro da poética, em um tempo em que a cultura do País sofre com a falta de espaços e desmontes institucionais.
O dizer poético em tempos de retrocesso
A poeta e professora Luciana Barreto, doutora em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, afirma que “as vias contemporâneas de recepção da poesia têm sido generosas em contemplar, nos espaços digitais mais diversos (blogs, revistas eletrônicas, e-books), as novas vozes autorais”.
Ela argumenta, no entanto, que se por um lado existe essa facilidade em publicar, o que gera uma permissividade demasiada e dificuldade de se balizar crítica e esteticamente as produções autorais; por outro, sem dúvida, há um acesso mais democratizado que amplia o dizer poético sobre a nossa época em seu feixe de retrocessos, contradições e indignações vertidos em bandeiras necessárias nessa conjuntura política tão grave”.
Marli Froes, outra integrante do grupo, destaca que a poesia se faz ainda mais necessária nesse contexto de crises políticas e sociais que desnudam a precariedade humana. “Quando afirmamos a nossa revolta com as mortes dos negros, com o feminicídio, por exemplo, estamos propondo outros modelos de sociedade; inclusive esteticamente”, observa.
(*) Jornalista e escritora, especial para o Brasília Capital