Por: Mário Pontes (*)
Ele talvez tenha deixado de ser lenda para a geração atual, mas ainda é uma comovente figura de artista nascido com a terra – no seu caso, com a terra e o fogo. Falo do jovem cearense Aderaldo. Que trabalhava com uma caldeira. Que explodiu e o privou da visão aos 21 anos de idade. Que para não se tornar mendigo, aprendeu a tocar viola e dedicou-se à arte de improvisar versos e cantar romances de cordel.
Assim, não apenas alcançou a fama, não apenas frequentou páginas de jornais, ondas de rádios e telas de tevê – mas adotou três filhos e os capacitou para a vida. Um deles, Raimundo, após anos de peregrinação deixou sua companhia para ser o primeiro fotógrafo profissional de minha pequena cidade. Os outros continuaram a acompanhá-lo em suas viagens e apresentações pelos quatro cantos do país.
Aderaldo passou apenas uma vez por Nova Russas, minha pequena cidade natal no oeste do Ceará. Bateu na porta de nossa casa, causando imediato frenesi na vizinhança. Com seu vozeirão inesquecível se disse informado de que meu pai, marceneiro, fazia cavaquinhos e violões desprovidos de enfeites porém capazes de emitir notas musicais satisfatoriamente. Poderia ele reparar uma costilha rachada de sua rabeca?
Emocionado, meu pai aceitou o desafio, e devolveuà rabeca seu som original. Em paga, Aderaldo aceitou fazer uma cantoria na casa dos pais de meu pai, a léguas da cidade. Onde lavradores rústicos, quase todos analfabetos, depois de ouvir o cego improvisar e cantar, viram cinema pela primeira e talvez única vez na vida. Em imagens projetadas sobre um lençol, pregado na parede de uma sala onde a temperatura andava pelos 40°, um carinha biruta tentava chegar a lugar nenhum cruzando um campo coberto de neve, onde fazia qualquer coisa como zero grau.
Ignoro o que a memória dos camponeses filhos do calor fez daquele contraste. Eu jamais o esqueci. E com a minúcia permitida pela memória e o pouco que tenho de poeta, reconstitui o episódio em um livrinho intitulado Doce como diabo, publicado em 1979 pela Codecri (Editora do jornal Pasquim), como parte de uma coleção dirigida pelo escritor e professor Muniz Sodré. Cariri,que além de cineasta é escritor,mencionou Doce como diabo em outra de suas obras. Volta citá-lo em seu novo livro Cego Aderaldo: o homem, o poeta e o mito.
E agora, leitores, atenção! Este não é o título de um livro qualquer, mas de uma obra na qual tudo é exuberância. Trata-se de um volume em grande formato, quase álbum(26 x 21 cm), com nada menos de 780 páginas, mais de quinhentas ilustrações documentais, sequência de textos para semanas de leitura, além de um disco com o filme de Cariri O Cantador e o Mito. O livro foi editado em Fortaleza Interarte, com o apoio da Secretaria Estadual de Cultura. Sem exagero, não me lembro de algo comparável na produção editorial brasileira, pelo menos nos longos anos em que a segui diariamente.
Meses atrás, aqui mesmo neste Brasília Capital, manifestei minha admiração pelo cineasta cearense, que há anos reitera sua capacidade de expressar-se também literariamente. Não de modo a dispersar seu grande talento, mas sempre a deixar claro o quanto se sente íntimo ao lidar com os conteúdos tradicionais da cultura nordestina, sem contudo dar as costas a tudo que a modernidade não dogmática tem a oferecer em termos de gosto e instrumentos de análise.
Com este livro – este surpreendentemente imenso e bem organizado repertório de informações, cada uma no seu justo lugar, com sua justa tonalidade, seu correto peso biográfico–Rosemberg Cariri nos traz uma valiosa contribuição ao entendimento do artista sertanejo da viola e do canto. Cujas experiências, somadas, fizeram dele, homem simples,uma personalidade fadada a sobreviver à corrosão do tempo e ao mofo da ignorância.
(*) Mario Pontes, ex-editor do Caderno Livro do Jornal do Brasil, ficcionista e tradutor de obras de ficção e ensaio.