(*) Fabrício Medeiros
Fabrício Medeiros. Foto: Alejandro Zambrana-Secom-TSE
No dia 5 de outubro, o Brasil celebrou os 37 anos da Constituição Federal de 1988, carinhosamente batizada por Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”. Mais do que uma efeméride, a data nos convida a uma reflexão sobre os caminhos percorridos pelo País desde a transição democrática e sobre a permanência de um pacto político que, mesmo posto à prova por crises e mudanças sociais profundas, continua a ser a âncora da vida democrática brasileira.
A promulgação da Carta de 1988 encerrou um ciclo autoritário e devolveu ao país o Estado Democrático de Direito. Restituiu o voto universal, direto e periódico, reforçou a separação de Poderes e garantiu à sociedade instrumentos de controle do Estado que antes eram frágeis ou mesmo inexistentes. Foi sob o seu amparo que se firmou a independência do Ministério Público, hoje peça-chave na defesa da ordem jurídica e dos interesses coletivos, e que o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, assumiu um protagonismo na proteção dos direitos fundamentais.
A descentralização federativa, consagrada no texto constitucional, fortaleceu a autonomia de estados e municípios e ampliou a capacidade do poder público de responder a demandas locais, tornando a democracia mais capilar e inclusiva.
Ao longo de quase quatro décadas, a Constituição foi também um marco na ampliação do catálogo de direitos. Reconheceu que cidadania não se limita a votar e ser votado, mas exige acesso à saúde, educação, previdência, assistência, moradia, trabalho digno e proteção ambiental.
Essa virada principiológica deu base a políticas públicas universais, como o Sistema Único de Saúde, que se consolidou como instrumento de inclusão e foi essencial na resposta à pandemia de covid-19. No campo da educação, a vinculação de receitas e a ampliação da rede escolar e universitária contribuíram para reduzir desigualdades históricas.
Povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionalmente relegados à invisibilidade, passaram a ter seus direitos culturais e territoriais reconhecidos, e a defesa do meio ambiente foi incorporada como dever do Estado e da coletividade, antecipando a centralidade da agenda ecológica.
A Carta de 1988 também plantou as sementes de um sistema de controle e transparência que, ao longo do tempo, transformou a relação entre Estado e sociedade. O fortalecimento do Tribunal de Contas da União, a autonomia do Ministério Público e a legitimação de instrumentos coletivos de tutela judicial abriram caminho para avanços legislativos posteriores, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei da Ficha Limpa.
O direito de acesso à informação e a criação de conselhos participativos ampliaram a accountability democrática e fizeram ecoar no presente o espírito participativo que marcou a Assembleia Constituinte.
Nesses 37 anos, salta aos olhos, ainda, um dos maiores feitos da Constituição Cidadã: proporcionar estabilidade institucional. O País enfrentou crises severas, incluindo dois impeachments presidenciais, sem ruptura da ordem democrática.
O texto constitucional demonstrou capacidade de adaptação, tendo passado por mais de uma centena de emendas que modernizaram os sistemas tributário, previdenciário e econômico, sem desfigurar seus fundamentos democráticos nem os direitos básicos. O fato é que essa resiliência comprova que a Constituição de 1988 não é um monumento estático, mas um pacto vivo, capaz de manter coesão em meio a profundas mudanças sociais e políticas.
É certo que, ao comemorar 37 anos, a Constituição ainda carrega promessas não inteiramente cumpridas. As desigualdades persistem, a implementação de políticas públicas enfrenta obstáculos e as instituições sofrem pressões que exigem permanente vigilância. No entanto, é inegável que foi graças ao seu arcabouço jurídico e institucional que o Brasil conseguiu avançar em inclusão social, estabilidade política e fortalecimento das liberdades públicas.
Celebrar este aniversário não é apenas relembrar o passado, mas renovar o compromisso com o futuro. A Carta de 1988 é, ao mesmo tempo, um marco e um horizonte: consolidou nossa democracia, mas também delineou um projeto civilizatório que permanece em construção.
O nosso desafio das próximas décadas, portanto, é preservar e atualizar seus valores, assegurando que as novas gerações herdem não só um texto constitucional, mas instituições robustas, direitos efetivos e um espaço público onde a cidadania seja vivida em plenitude.
Nesses 37 anos, a experiência brasileira reafirma que a democracia não se resume a eleições periódicas: ela se realiza na efetividade dos direitos, na proteção das minorias, na transparência da gestão pública e na confiança nas instituições.
Defender a Constituição, portanto, é defender a possibilidade de um Brasil mais justo, plural e solidário. É lembrar que a democracia é uma obra coletiva, sempre inacabada, que precisa ser cultivada dia a dia, geração após geração.
(*) Advogado e Professor do IDP Brasília
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