(*) Ricardo Martins Junior
Nos últimos dias, ganhou repercussão nacional a decisão da Universidade Federal de Pernambuco de reservar, por meio do Edital nº 31/2025, todas as oitenta vagas do curso de Medicina, campus Caruaru, exclusivamente a beneficiários do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.
Conforme o Edital, somente poderiam se inscrever no curso assentados, acampados, quilombolas, educadores e egressos de cursos promovidos pelo INCRA. A medida, saudada por alguns como política inclusiva, foi severamente criticada por entidades médicas de Pernambuco e políticos, que apontaram grave desvio de finalidade e risco à qualidade do ensino. Mais recentemente, o edital foi suspenso pela Justiça Federal em liminar concedida em sede de ação popular.
A controvérsia recoloca em pauta um tema já enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal: a constitucionalidade das ações afirmativas. No julgamento paradigmático da ADPF 186, a Corte reconheceu corretamente a legitimidade das cotas raciais como instrumento de concretização da igualdade material, mas fixou balizas essenciais.
Essas políticas só são admissíveis quando proporcionais, temporárias, transparentes e destinadas a corrigir desigualdades estruturais sem, contudo, eliminar o critério de mérito acadêmico nem excluir integralmente outros candidatos. Caso contrário, como bem registrou Ricardo Lewandowski à época, “tais políticas poderiam converter-se em benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática”.
Essa orientação revela um ponto crucial: a inclusão não pode se transformar em exclusão. Daí por que impedir, de forma absoluta, que qualquer outro candidato concorra às vagas em certames como o citado representa não apenas um rompimento do núcleo essencial do princípio da isonomia, mas também uma subversão à lógica inclusiva das ações afirmativas.
Voltando-se, mais uma vez, os olhos para o específico caso de Pernambuco, não se desconhece que o art. 207 da Constituição confere às universidades liberdade didáticocientífica e administrativa, mas sempre nos marcos da legalidade, da impessoalidade e da eficiência.
O Supremo, em precedentes como a ADI 51, já advertira que “a autonomia não significa nem pode significar que a Universidade se transforme em uma entidade solta no espaço, sem relações com a administração”. Criar processos seletivos exclusivos, com critérios destituídos de base constitucional e desconectados da finalidade pública da educação, extrapola os limites dessa prerrogativa.
É preciso insistir que a qualidade do ensino, princípio fundamental inscrito no art. 206, inc. VII, da Constituição, também está em jogo. Seleções estruturadas à margem de critérios técnico-educacionais ignoram a complexidade do conhecimento exigido. O resultado prático é duplamente nocivo: o comprometimento da formação acadêmica e o enfraquecimento da credibilidade do sistema público de ensino superior.
Não se trata de negar a legitimidade das políticas afirmativas, indispensáveis em um país marcado por desigualdades históricas, mas de reconhecer que a Constituição exige calibre e proporcionalidade, justamente para evitar privilégios arbitrários e assegurar que o acesso democrático às universidades não se converta em um mecanismo de exclusão.
O debate sobre inclusão e justiça social é fundamental e deve ser permanentemente renovado. Todavia, não pode prescindir dos limites constitucionais que garantem igualdade, impessoalidade e qualidade do ensino. A lição que emerge do caso pernambucano é clara: a nobre intenção de ampliar oportunidades não autoriza atalhos que corroem princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
(*) Ricardo Martins Junior. Advogado, com graduação e pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. É sócio do Medeiros & Barros Correia Advogados.