Marcelo Neves (*)
“Ainda estou aqui”, dirigido por Walter Sales Jr., com base em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, é um filme impactante e comovente. Tocou-me o fundo da alma.
Estrelado pela brilhante Fernanda Torres, no papel da Eunice, uma mulher-fortaleza, o filme nos apresenta de maneira esteticamente marcante a prisão e o desaparecimento, em 1971, do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, e as consequências para a sua família.
Em uma cena inicial, Eunice menciona “a Ordem dos Advogados do Brasil”. Nesse contexto, os encontros familiares na casa da família Paiva, em Ipanema, lembraram-me o Rio daquela época e trouxeram-me reminiscência dos encontros familiares na casa dos meus pais na mesma época, lá no distante Rosarinho: casa cheia e ventilada por cobogós, lugar de encontro e partilha, amigos, um casal em sintonia, alegria, comida caseira para quem chega.
Sou da mesma geração de Marcelo Rubens Paiva (a cena de sua despedida dos amigos de infância me sacudiu), cujo sucesso literário acompanhei desde “Feliz Ano Velho”. Há um ponto de encontro entre a tragédia do seu pai e a atuação do meu pai, José Cavalcanti Neves, como presidente do Conselho Federal da OAB de 1971 a 73, no período mais duro da ditadura militar.
Ambos eram pessoas bem-sucedidas da classe média alta brasileira. Mas Rubens um homem de esquerda, enquanto meu pai, um conservador. Apesar disso, eles se encontravam em uma dimensão da atitude existencial: o compromisso com os direitos humanos e a coragem em defendê-los em um momento de autoritarismo.
O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana fora criado no governo de João Goulart. No regime ditatorial, sua composição foi alterada para garantir uma maioria segura do governo em suas decisões. O MDB, partido oficial de oposição, que teria dois representantes no CDDPH – seus líderes na Câmara e no Senado –, decidiu não participar das sessões do Conselho em protesto contra a alteração de sua composição.
O Conselho Federal da OAB decidiu que seu presidente deveria participar das sessões e votar com independência, mesmo que fosse uma voz minoritária. Os votos da OAB poderiam ter um significado simbólico contra os abusos praticados pelo CDDPH.
É nesse ponto que há o encontro das experiências familiares tão diferentes. No CDDPH, presidido pelo ministro Alfredo Buzaid, um leal servidor da ditadura, a OAB, representada pelo seu presidente, votava sempre, isoladamente, contra o arquivamento dos inquéritos de apuração de ofensas aos direitos humanos de opositores do regime. Como lembrou o historiador Paulo Jorge Campos, o CDDPH arquivava os processos “sempre com o voto contrário de Cavalcanti Neves”.
Além dos casos de Odijas Carvalho e Stuart Angel, entre outros, meu pai votou contra o arquivamento do inquérito para investigação do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva. Essa postura não envolvia apenas um ato irritante para o presidente do CDDPH, mas também ameaças anônimas contra meu pai, que permaneceu firme e inabalável votando de acordo com sua consciência e fiel ao Conselho Federal da OAB.
Lembro-me vagamente que, à época daquelas sessões do CDDPH, meus irmãos mais velhos, sem que eu, ainda adolescente, soubesse do motivo, disseram-me certa vez que meu pai tinha telefonado dando ordem para que ninguém saísse de casa para brincar na praça, onde encontrávamos vizinhos e pessoas dos arredores para jogar “queimada”, correr em carros de rolimã, jogar bolas de gude, bater peladas, empinar papagaio etc.
Na memória, ainda vejo a imagem de minha mãe rezando chorosa depois de falar com meu pai pelo telefone. Somente bem mais tarde, pude entender toda a trama. Meu pai, então, narrou que recebia ligações telefônicas anônimas no seu apartamento no Hotel Excelsior, em Copacabana, antes de ir para as sessões do CDDPH. As ameaças incluíam algo como: “Conhecemos o seu endereço na Praça Santos Dumont, 987, onde moram seus doze filhos”.
Depois que saí da sala de cinema aqui em Brasília, senti uma tristeza profunda, mas a estética delicada do filme, com uma fotografia sofisticada, foi gratificante. Vai muito além de sua fundamental implicação política. É que a arte abre camadas adormecidas da mente e estimula emoções inusitadas.
No caso de “Ainda estou aqui”, uma afirmação de Dostoiévski, em “O Idiota”, veio-me à mente: “A compaixão é a lei mais importante e talvez a única da existência de toda a humanidade”.