Os gritos de “macaco” ouvidos no estádio Mestalla, na Espanha, no domingo (21), fizeram de Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior um símbolo da luta antirracismo. O jovem de 22 anos, de origem humilde, não se calou diante dos insultos que tentavam diminui-lo enquanto ser humano apenas por conta da cor de sua pele. E Vini respondeu em alto e bom som: Basta! E seu grito ecoou por todo o mundo. E foi amplificado no Brasil.
Partiu do governo brasileiro uma das primeiras manifestações públicas sobre a injúria racial. Nota conjunta dos ministérios das Relações Exteriores, da Igualdade Racial, dos Esportes e dos Direitos Humanos e Cidadania repudiou, já na segunda-feira (22), “nos mais fortes termos”, os ataques racistas ao craque do Real Madrid.
O Brasil exigiu das autoridades governamentais e esportivas da Espanha “providências para punir os autores dos atos de racismo e evitar que eles se repitam”. A nota cita nominalmente a Federação Internacional de Futebol (Fifa), a Federação Espanhola e a “LaLiga”, a Primeira Divisão do campeonato espanhol.
A ministra de Igualdade Racial, Anielle Franco, disse que os atos racistas são um mal que “precisa ser combatido na raiz”. O Itamaraty reuniu-se com a embaixadora da Espanha no Brasil, Mar Fernández-Palacios, para cobrar explicações.
A ministra substituta das Relações Exteriores, Maria Laura da Rocha, criticou a reincidência de atos racistas em gramados espanhóis. “Espanta a persistência dos crimes cometidos contra o atleta brasileiro, contra todos os afrodescendentes, e sim, contra toda a humanidade, a cada cântico e a cada gesto racista lançado contra o jogador”, ressaltou.
Lula se solidariza – Antes de embarcar no Japão de volta ao Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também se solidarizou. “É importante que a Fifa e a Liga Espanhola tomem sérias providências, porque nós não podemos permitir que o fascismo e o racismo tomem conta dos estádios de futebol”, disse.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, admitiu que o Brasil pode usar o Artigo 7º do Código Penal, a Lei da Extraterritoriedade, que é a aplicação de normas brasileiras em caso de agressões a brasileiros fora do País.
Mundo do futebol condena ataques a Vini
Clubes, atletas, entidades e autoridades públicas condenaram os reiterados ataques racistas sofridos por Vini Jr. O presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, prestou solidariedade ao jogador e enfatizou que “a cor da pele não pode mais incomodar”. “Não há alegria onde há racismo”, diz outro trecho.
A Conmebol, que gere o futebol sul-americano, também publicou comunicado oficial em que afirma: “Futebol é sinônimo de igualdade e respeito dentro e fora do campo”.
O atacante da Seleção Brasileira Neymar postou: “Tô contigo, Vini Jr”. O francês Mbappé, companheiro de Neymar no PSG, reforçou: “Você não está sozinho. Estamos com você e vamos te apoiar”.
Richarlison, do Tottenham, foi contundente: “Sempre fizeram de tudo para evitar que o preto chegasse ao topo. Mas nunca vão derrubar quem nasceu para ser grande. A história se esquece dos ratos e agiganta quem luta contra essa gente ruim”.
Todos os 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro se manifestaram a favor de Vini Jr.
Espanha fala em “tolerância zero”
Por meio de nota, o Ministério de Cultura e Esporte da Espanha falou em “tolerância zero” com o racismo no futebol. “O esporte se fundamenta nos valores da tolerância e do respeito. O ódio e a xenofobia não cabem em nosso futebol, nem em nossa sociedade”, diz trecho do documento. Ao fim, informa que irá propor à Federação Espanhola de Futebol e La Liga uma campanha de conscientização dirigida aos torcedores.
Nota do governo brasileiro
“O governo brasileiro repudia, nos mais fortes termos, os ataques racistas que o atleta brasileiro Vinícius Júnior vem sofrendo reiteradamente na Espanha.
“Tendo em conta a gravidade dos fatos e a ocorrência de mais um inadmissível episódio, em jogo realizado ontem, naquele país, o governo brasileiro lamenta profundamente que, até o momento, não tenham sido tomadas providências efetivas para prevenir e evitar a repetição desses atos de racismo.
“Insta as autoridades governamentais e esportivas da Espanha a tomarem as providências necessárias, a fim de punir os perpetradores e evitar a recorrência desses atos. Apela, igualmente, à FIFA, à Federação Espanhola e à Liga a aplicar as medidas cabíveis.
“O governo brasileiro tem atuado em cooperação com o governo da Espanha para coibir, reprimir e promover políticas de igualdade racial e compartilhar conhecimento e boas práticas para ampliar o acesso de pessoas afrodescendentes e imigrantes ao esporte com total intolerância a toda e qualquer prática discriminatória, com o apoio ao aperfeiçoamento das melhores práticas internacionais para promover a prevenção e o combate ao racismo, além de qualquer tipo de discriminação nas diferentes modalidades de esportes.”
Fascistas disfarçados de torcedores
Os insultos racistas direcionados a Vinícius Jr. trazem à tona um problema que vai muito além da rivalidade no futebol: fascistas disfarçados de torcedores nas arquibancadas. O histórico violento do Ultra Yomus, torcida organizada do Valência de ideologia nacionalista espanhola, mostra que este não é apenas mais um caso isolado.
Em 2019, o grupo de extrema-direita foi banido dos estádios na Espanha por fazer saudações nazistas em direção à torcida do Arsenal, da Inglaterra, em partida da Liga Europa. Um deles imitou um macaco, foi identificado e proibido de frequentar jogos do Valência naquele ano.
As raízes do Yomus, criado em 1983, têm influência no comportamento radical de hooligans ingleses e “ultras” italianos durante a Copa do Mundo de 1982, na Espanha.
Nos anos 1990, a internacionalização do movimento skinhead aproximou a gangue valenciana do Acción Radical, grupo neonazista que assassinou um jovem de 18 anos, em 1993, por usar um casaco com anagrama antirrascista. A facção era chefiada por Manuel Canduela, que viria a ser líder do partido político ultranacionalista Democracia Nacional.
O presidente de La Liga, Javier Tebas, também ganhou os noticiários mundo afora por minimizar o racismo sofrido por Vini Jr, sem sequer prestar solidariedade ao atacante brasileiro. Tebas preocupou-se mais em proteger o produto que administra.
“Nem Espanha, nem La Liga são racistas. É muito injusto dizer isto. Não podemos permitir que se manche a imagem de uma competição que é sobre o símbolo de união de povos, onde mais de 200 jogadores são de origem negra em 42 clubes que recebem em cada rodada o respeito e o carinho da torcida”, escreveu nas redes sociais.
O posicionamento do chefão da liga espanhola reflete os ideais do Vox, partido de extrema direita apoiado publicamente por Tebas e que tem ideários racistas, xenofóbicos e anti-imigração. Os integrantes da agremiação são conhecidos na Espanha por serem admiradores do “legado” do ditador Francisco Franco.
Punição para “inglês ver”
O Comitê de Competição da Real Federação Espanhola de Futebol puniu o Valencia, na terça (23), com o fechamento da arquibancada Mario Kempes por cinco jogos. Foi desse setor do estádio Mestalla que partiu a maioria das ofensas contra Vini Jr. O clube também foi multado em 45 mil euros (cerca de R$ 241 mil). Já a punição pelo cartão vermelho, aplicada contra o atacante brasileiro em campo, foi retirada.
Em nota oficial, o Valencia reclamou da punição que recebeu “A luta contra o racismo requer o compromisso real de todas as partes envolvidas, sem usar isso como pretexto para incorrer em graves injustiças. O Valencia vai recorrer em última instância sobre o fechamento da ‘Grada de Animación’, sanção que considera totalmente injusta e mais uma infração nas últimas decisões disciplinares que têm sido tomadas contra o clube. O Valencia pede o máximo respeito e rigor para a nossa instituição e torcedores”.
Ovacionado no Santiago Bernabéu
No reencontro com a torcida do Real Madrid, na quarta-feira (24) – o primeiro após o episódio em Valência –, Vini Jr. foi ovacionado de pé no Santiago Bernabéu, aos 20 minutos de jogo — em alusão ao número da camisa do brasileiro.
Antes do duelo contra o Rayo Vallecano, os companheiros de time entraram em campo vestindo a camisa 20. Das tribunas de honra, ao lado do presidente Florentino Pérez, o jovem de São Gonçalo (RJ) fez um aceno em agradecimento.
CLDF aprova moção de repúdio
A Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou, na terça-feira (23), uma moção de repúdio aos atos de racismo direcionados ao jogador brasileiro. O autor da proposta, deputado Pastor Daniel de Castro (PP), disse carregar um “sentimento de indignação” desde domingo.
“Fiquei estarrecido com a cena de racismo de um estádio contra um jogador brasileiro que, em sua essência, exala alegria naquilo que faz. Vini Jr. tem sido constantemente vítima, e é estarrecedora a força daquele menino, que enfrentou um estádio contra si”.
O distrital Thiago Manzoni (PL) também lamentou: “Nosso coração está ferido”. E seguiu: “Ele está jogando num dos times mais importantes do mundo. Tem sido um gigante na Europa, enfrentando um povo que se considera melhor que ele. Espero que a alegria que ele tem de desenvolver a profissão nunca deixe de existir”.
A CLDF aprovou, ainda, uma moção de apoio incondicional ao jogador brasileiro e a todos os atletas vítimas de atos de racismo no meio esportivo. A proposta partiu do deputado Gabriel Magno (PT).
Além disso, o deputado Rogério Morro da Cruz (sem partido) informou ter protocolado moção de repúdio à La Liga. “É a décima vez que Vini Jr. é alvo de discriminação durantes os jogos”, apontou.
“Hashtag não me comove”
Pelas redes sociais, Vinícius Júnior cobrou ações concretas para erradicar o racismo do futebol e da sociedade. “Quero ações e punições. Hashtag não me comove”.
Na postagem em que agradeceu ao Núcleo de Esporte e Fé do Santuário, à CBF e ao Observatório da Discriminação Racial no Futebol por apagar as luzes do Cristo Redentor por uma hora, na noite da segunda-feira (22), o jogador deixou uma mensagem a todos que o apoiaram.
“Agradeço demais toda a corrente de carinho e apoio que recebi nos últimos meses. Tanto no Brasil quanto mundo afora. Sei exatamente quem é quem. Contem comigo porque os bons são maioria e não vou desistir. Tenho um propósito na vida e, se eu tiver que sofrer mais e mais para que futuras gerações não passem por situações parecidas, estou pronto e preparado”.