Alessandra Roscoe (*)
Em mais de 500 anos de história, pela primeira vez no Brasil duas mulheres indígenas são eleitas para mandatos no Congresso Nacional. Célia Xakriabá (Psol-MG) e Sônia Guajajara (Psol-SP) chegam juntas à Câmara dos Deputados, espaço majoritariamente branco e masculino, para inaugurar também a primeira Bancada do Cocar.
O caminho foi aberto em 2018 por Joênia Wapichana (Rede-RO), a primeira mulher indígena a chegar ao Parlamento, mas começou a ser traçado muito antes, no chão das aldeias, nas bases, em lutas diárias por voz e representação, nas marchas e acampamentos que passaram a ser constantes em Brasília nos últimos tempos.
Historicamente, as mulheres indígenas, crianças, jovens e anciãs enfrentam violências de gênero as mais diversas. Das coloniais e patriarcais, às psicológicas, físicas e sexuais. Até mesmo pelo direito ao uso do cocar, elas tiveram que brigar. O adereço que usam hoje, durante muitos anos foi restrito apenas aos homens, aos caciques. Para elas, somente as tiaras de flores e os espaços do cuidar.
O combate à violência de gênero dentro das aldeias é uma das bandeiras de luta. As penas dos guerreiros em forma de coroa na cabeça e o direito de se tornarem lideranças em suas comunidades e poderem ser Cacicas, Pajés teve que ser conquistado. E em alguns povos, ainda é negado às mulheres.
Vozes e gritos – As indígenas querem ocupar mais espaços nas discussões e participar efetivamente das decisões políticas do País. São os corpos de meninas e mulheres indígenas os mais violentados nos territórios ocupados pela mineração, pelo extrativismo e por todas as atividades ilegais que nos últimos anos cresceram assustadoramente por falta de políticas de proteção e fiscalização.
Para garantir mais espaços de fazer, elas se juntam, se organizam, como fizeram nas duas grandes Marchas de Mulheres Indígenas em 2019 e 2021, nos Acampamentos Terra Livre e agora na Pré-Marcha que reuniu em Brasília mais de 150 lideranças indígenas femininas dos seis biomas do País, para traçar as estratégias do movimento, marcado para setembro deste ano.
Vieram discutir, reivindicar e elaborar propostas. Mas vieram também celebrar a posse das parentas que consideram uma posse ancestral. Com rezas e ervas, no ritmo dos maracás, no entoar das vozes, no rodar dos corpos pintados de jenipapo e urucum, ornados com as cores das penas e das miçangas, a chegança veio de muito antes, como tudo na trajetória delas, que há 523 anos lutam, resistem e tentam fazer com que suas vozes e seus gritos sejam escutados.
Mais que isso, seguram o céu acima de nossas cabeças, mantêm de pé as florestas, apesar de toda a destruição, de toda a violência e ganância que devoram rios, territórios e muitas vidas.
Momento histórico de esperançar
Não é sem olhar para trás que Sônia Guajajara e Célia Xakriabá miram outros futuros possíveis e protagonizam esse momento histórico de esperançar, de fazer diferente e, a partir do chão de seus territórios, dos saberes ancestrais e das subjetividades, reflorestar as mentes e os espaços de poder.
As duas assumiram seus mandatos, e mesmo Sônia já passando o bastão na Câmara para o suplente Ivan Valente (Psol-SP), para assumir o Ministério dos Povos Indígenas, a força que esta posse dupla carrega não é apenas simbólica. Para chegar onde chegaram, as mulheres indígenas precisaram brigar muito.
Se já é difícil para as mulheres neste país lutar por seus direitos, imagina para nós indígenas, que já nascemos, muitas vezes, sem ter voz para decidir nosso futuro. Somos silenciadas o tempo todo. E é por não sermos escutadas e respeitadas que temos nossos corpos também violados. Mas isso está mudando com os coletivos, com nossa organização, nossas marchas e vai se consolidar ainda mais neste novo momento, com as parentíssimas no Congresso e na Esplanada”,
explica Braulina Baniwa, uma das lideranças da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), entidade que, junto com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), organiza a Pré-Marcha das Mulheres.
III Marcha das Mulheres Indígenas
Em vários dias de plenárias e reuniões no Centro de Formação da Funai, em Brasília, lideranças de 19 estados e do Distrito Federal começaram a construir a agenda e a programação da III Marcha de Mulheres Indígenas, marcada para setembro, na capital federal. Elas também participaram das celebrações da posse da Bancada do Cocar.
Célia Xacriabá, na véspera de ser empossada, esteve no acampamento da Pré-Marcha para cumprir o ritual do esvaziamento do corpo-território, dos movimentos sociais e dos enfrentamentos, para que possa assumir um outro corpo de luta, agora no espaço do poder. Benzimentos, defumações com folhas de limão, cantos e danças para pedir proteção, encantarias para abrir os caminhos.
Célia Xakriabá, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana, que assume a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), cargo pela primeira vez ocupado por uma mulher indígena, não chegam ao coração político do País sem trazer consigo cada um dos corpos tombados. Nos últimos quatro anos, foram assassinadas, em conflitos por terra, 40 lideranças indígenas, e mortas mais de 570 crianças Yanomami de fome e falta de cuidados.
Essas mulheres guerreiras e seus povos originários resistiram e resistem, às invasões dos territórios sagrados, ao garimpo, à pesca, à extração ilegal de madeira, ao narcotráfico, ao agronegócio sem limites, ao genocídio e ao extermínio. Mas são mulheres-semente, mulheres-raiz, mulheres-água, mulheres-terra, mulheres-onça que não se intimidam e que sempre estiveram prontas para assumir o protagonismo de suas histórias.
Um dia histórico
Sônia Guajajara, ministra dos povos indígenas, pasta que também pela primeira vez será ocupada no governo brasileiro, comemora, mas sabe que a luta seguirá sem trégua.
Hoje é sim um dia histórico, um dia que marca um novo momento da história dos povos indígenas. Passa um filme na minha cabeça, lembrando de tantas lutas, tantas de nós, correndo em 2015 nos gramados de Brasília, enfrentando a polícia, levando balas de borracha, chorando com spray de pimenta. Não tem como não lembrar de todas as situações que passamos e que a gente sabe que vai passar ainda. Hoje é um momento de muita alegria, mas nós estamos exatamente agora tendo um corpo Guajajara velado num território Araribóia. Foram duas mortes no mês de janeiro no meu território Araribóia e mais uma no Maranhão, em outro território, e outros dois baleados. Só em janeiro foram três assassinatos e duas tentativas. E é por isso também que tenho coragem de seguir e dizer que a gente nunca chegou sozinha, porque ninguém chega sozinho. E a violência contra nossos povos vai continuar. Quando poderíamos imaginar em 2023 iríamos assistir ao que está acontecendo com o povo Yanomami, em Roraima? Como que se permite que povos indígenas cheguem nesse limite de uma crise humanitária para o mundo inteiro ver?”.
Célia Xakriabá, conhecida por parir palavras-mundo, se vestiu de onça e do amarelo do pequi de seu bioma, o Cerrado. Amanheceu, no dia da posse, num café da manhã com parentas cantando e convidando quem estava perto para cantar junto. Misturou canto com fala e poesia para mandar seu recado certeiro aos que ainda duvidam do que é capaz a força originária desses povos-natureza:
O Brasil que resiste
Foi assim que aprendemos a cantar uma o canto da outra; foi assim que quando nos negaram o microfone no Congresso Nacional, nós cantamos todas juntas do lado de fora. Somos semente e não mulheres somente, chegamos ao Congresso eu e Sônia, a Bancada do Cocar, mas levamos com a gente mais de 900 mil indígenas. Vamos entrar naquele salão verde que é desmatado, porque nunca se pensou a presença das mulheres indígenas em sua diversidade. Poder vai ser o que nós faremos. Aqui em Brasília, eu vi mulher violentada, eu vi Galdino ser queimado [Galdino Jesus dos Santos, líder indígena pataxó hã- hã- hãe, no dia 19 de abril de 1997, estava em Brasília reivindicando demarcação de terras indígenas. Estava hospedado numa pensão, mas foi impedido de entrar porque voltou depois do horário e acabou dormindo numa parada de ônibus. Foi vítima de um crime brutal, cometido por cinco assassinos de classe média alta. Teve o corpo incendiado enquanto dormia e não resistiu aos ferimentos]; eu vi a Justiça cega e o Direito ser sequestrado. Até tentaram nos soterrar e mal sabiam que éramos semente. Temos um pé no chão da aldeia e outro do lado de cá, porque nós somos o Brasil que resiste. Antes do Brasil da coroa, existe o Brasil do Cocar!”.
Célia Xakriabá
Mesmo diante de uma maioria engravatada e muitas vezes truculenta na defesa de seus interesses nem sempre nobres, o Brasil dos cocares garante que não irá nunca mais se intimidar. Ao lado de Sônia e Célia, na hora da posse, outras ministras se fizeram presentes e falaram também do documento histórico que testemunhavam começar a ser escrito naquele exato momento no plenário da Câmara lotado.
Ser ouvidas na Casa de surdos
Para Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, ter Célia no Parlamento e Sônia na Esplanada é de uma importância, política, histórica e simbólica sem precedentes. É a sinalização de que se inicia o tempo de reparar séculos de apagamento dos povos indígenas, que, assim como o povo preto, sempre foi deixado trancado do lado de fora. “Agora nós estamos aqui para abrir portas e não mais entrarmos por frestas”, disse a ministra durante a solenidade de posse.
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, citou Célia Xakriabá para lembrar que, naquela casa de surdos, as mulheres indígenas de agora em diante serão ouvidas. Disse ainda esperar que esta seja apenas a primeira de muitas bancadas indígenas no Parlamento.
Outra que celebrou o feito das novas parlamentares foi Margareth Menezes, ministra da Cultura. Ela lembrou que dar voz e vez aos povos originários com um ministério é um direito ancestral e que agora veio para ficar. Logo depois de empossadas, Sônia Guajajara, Célia Xakriabá e Joênia Wapichana, que assumiu a Funai se reuniram com a primeira-dama Janja da Silva, e com centenas de lideranças femininas de mais de 240 povos indígenas de todo o País para começar a definir prioridades.
Carta – A Carta das Indígenas Mulheres do Brasil, com quase 100 reivindicações, foi entregue a Janja, que se comprometeu a trabalhar junto ao governo para que nenhuma criança indígena morra de fome e nenhuma terra indígena tenha que conviver com o garimpo ilegal e a violência.
Para Juliana Tupinambá, liderança da Mata Atlântica, não é só nos corredores do Congresso e na Esplanada dos Ministérios que o cocar estará presente. Ela, que se juntou a outras centenas de guerreiras da ancestralidade na pré-marcha e fez questão de acompanhar de perto a posse de Sônia e Célia como parlamentares, lembrou da emoção de ver Raoni, a maior referência indígena no Brasil, subir a rampa do Planalto com o presidente, ao lado de outros representantes de minorias que garantem a diversidade que colore o Brasil. Os dois momentos representam, para ela, sinais de um novo tempo.
Txai Surui, jovem liderança da Amazônia, única brasileira a ter voz no salão principal na COP 26, acredita que este é o tempo de esperançar, “de parar de resistir um pouco para poder começar a sonhar, porque a gente merece sonhar também e começar a construir”.
Momento de retomada
Samela Satere-Mawé, influencer indígena que faz questão, dentro e fora das redes sociais, de ocupar todas as esferas de poder que lhe cabem, não esconde o descontentamento com todos os anos em que outros falaram pelos povos indígenas. Neste momento de retomada, ela ressalta a importância da terra fértil que se abre para construções coletivas e ancestrais, com mais indígenas nas esferas federais e estaduais do poder.
Os espaços começam a ser ocupados por outras mulheres no rastro delas, como Puyr Tembé e Juliana Alves, que assumem em seus territórios, respectivamente no Pará e no Ceará, secretarias dos povos indígenas.
A anciã Cintia Guajajara ganhou mais motivos para entoar seus cantos de celebração e dançar as danças de festejos de seu povo e de proteção para que, com a força do maracá, possa abrir caminhos para os desafios que virão.
Elizângela Baré, liderança e comunicadora indígena, é outra que enxerga sinais de novos tempos com a chegada de duas parentas no Congresso e de outras indígenas nos espaços de poder. Ela fala sobre os desafios da educação, da saúde, da destruição dos biomas e das violências nos corpos e territórios indígenas. Defende garimpo zero e demarcação já, com o alerta de que as mulheres indígenas aprenderam na marra, em todos esses anos de violências, a fazer de suas dores, de suas águas, instrumento de luta. “A gente chora e nossas lágrimas regam as sementes das mudanças que queremos, que sonhamos e elas brotam com mais força!”
Vanda Witoto não se elegeu, apesar de ter recebido 26 mil votos no Amazonas, e acha de extrema importância na história política do Brasil a chegada de duas mulheres indígenas no Parlamento diante da ausência dos corpos de povos originários nas esferas do poder político para, sobretudo, garantir a efetivação de políticas públicas.
Cartilha – Durante os dias de Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, foi lançada a cartilha Mulheres: Corpos-Territórios Indígenas em Resistência e o jogo Quem é ela? Conheça as guerreiras da Ancestralidade, um jogo de cartas e tabuleiro, que terá versão física e virtual para fazer com que os saberes e as lutas indígenas se façam presentes em escolas e bibliotecas dentro e fora das aldeias.
Combate ao garimpo ilegal
A semana histórica da ascensão dos cocares ao Poder em Brasília foi encerrada com a posse-celebração de Joênia Wapichana. Numa solenidade concorrida, na sede do Memorial dos Povos Indígenas, diante de lideranças históricas, como o Cacique Raoni e a ministra Marina Silva, Joênia anunciou a retomada da Funai e, antes mesmo de discursar, assinou sete atos para a criação de Grupos de Trabalho que pretendem identificar e demarcar áreas sensíveis nos territórios e combater, principalmente, o garimpo ilegal.
“A Funai voltou e eu quero dizer que todo esse caminho que fizemos para chegar até aqui, foi longo, sofrido. Muitas vidas se perderam e ainda estão se perdendo. Passamos anos de desvalorização, de sucateamento, de falta de recursos. Mas isso agora vai mudar. Vamos fortalecer a Funai, buscar orçamento, parcerias e comprometimento. A responsabilidade de reeguer a Funai é uma missão que assumo e que quero compartilhar com toda a sociedade civil” ressaltou.
A retomada urgente das demarcações é um dos temas fundamentais para a reconstrução das políticas públicas voltadas aos povos indígenas, assim como combate ao garimpo ilegal e a busca por políticas de saúde, justiça segurança, educação e cultura nos territórios. As mulheres indígenas garantem que, mais do que fiscalizar, querem participar de forma ativa de todas as construções daqui para a frente.
(*) Jornalista e escritora – Especial para o Brasília Capital