J. B. Pontes (*)
Estamos a poucos dias do término de um dos governos corrupto e, acima de tudo, mentiroso, da história do Brasil. E o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá, sem dúvidas, grandes dificuldades para realizar o seu plano de governo, pois contará com um Congresso Nacional dominado pelo Centrão, cujos parlamentares foram eleitos por força do poder econômico que lhes proporcionou o orçamento secreto.
Felizmente, para o novo governo e para o povo brasileiro, esse período obscuro e tormentoso termina concomitantemente com o maior esquema de corrupção engendrado por Bolsonaro e seus cúmplices no Congresso – o chamado orçamento secreto. Finalmente, o Supremo Tribunal Federal decidiu, seguindo consistente relatório da ministra Rosa Weber, declarar inconstitucionais as emendas de relator, identificadas no orçamento com a sigla RP9.
E não nos esqueçamos de que, por esse ralo – orçamento secreto –, já foram desviados para as mãos de políticos corruptos, do Centrão, mais de R$ 54 bilhões. Esse esquema garantiu estabilidade política a Jair Bolsonaro, especialmente na Câmara dos Deputados, sob o comando do presidente da Casa, Artur Lira (PP-AL), cujos parlamentares do Centrão blindaram o chefe do Executivo contra mais de 140 pedidos de impeachment. Em troca, asseguraram recursos para suas bases por meio das bilionárias emendas de relator, que foram usados para obtenção de apoios políticos e compra de votos.
São inúmeros os fatos obscuros e ilegais ocorridos no desgoverno Bolsonaro que devemos jamais nos esquecer. Antes, porém, é preciso relembrarmos o que era Bolsonaro e os eventos que o levaram, numa verdadeira tragédia, a ser eleito presidente.
Tenente expulso do Exército
Bolsonaro foi um tenente expulso do Exército por atos de terrorismo contra a própria instituição, pena revertida por membros da extrema direita integrantes à época do Supremo Tribunal Militar. Logo depois, foi discretamente expurgado das fileiras do Exército para uma confortável reserva remunerada, sendo, em decorrência, promovido a capitão.
Como nada sabia fazer, resolveu ingressar na carreira política, sempre apoiado por uma enorme base de militares e milicianos do estado do Rio de Janeiro. Eleito deputado federal por várias legislaturas, nunca chegou a ter destaque, sempre integrando uma maioria de parlamentares sem nenhuma expressão, denominada de “baixo clero”.
Adepto da tortura
Bolsonaro começou a aparecer nas manifestações populares de 2013 e foi galgado à condição de notoriedade nas manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, sempre expressando um discurso radical de extrema direita, explicitando ser adepto da ditadura, da tortura, defensor do extermínio dos que considerava comunistas, socialistas ou esquerdistas, e contrário aos avanços conseguidos por minorias – indígenas, quilombolas e outras.
Passou então a ser aceito e visto como alternativa de poder para as eleições de 2018 e a receber o endosso do estamento militar que o tinha rejeitado anteriormente, constituído pela oficialidade superior que se ressentia da perda do poder do período da ditadura. Assim, foi alçado à categoria de “mito”.
Boneco tosco como instrumento político
Jair Bolsonaro – Foto: Reprodução Agência Brasil
Os “liberais”, identificados com a nossa elite escravocrata, capazes de aceitar qualquer arroubo libertário em nome do mercado, aderiram com alegria ao candidato antipetista. Na verdade, os militares e a elite empresarial viram nele um boneco, bronco e tosco, mas adequado para ser usado como instrumento político.
Bolsonaro foi também sendo identificado por personagens que estavam calados, abafados pela redemocratização, público que veio se assumindo e tendo cada vez mais coragem de expressar as mesmas mazelas morais e políticas dele, situação potencializada a partir da crise do governo Dilma; da decepção com o PT, que não mais era percebido como o partido da ética na política; com a erosão da militância de esquerda e o crescimento da “militância” evangélica.
Foi assim que chegamos à tragédia da vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018, quando Lula, que mantinha uma larga vantagem nas pesquisas de intenção de votos, foi afastado da disputa eleitoral por meio de ameaças militares, expressadas pelo então comandante do Exército, General Villas Boas, e a subserviência do STF. E não nos esqueçamos da “facada fake”, que causou comoção popular e certamente influenciou na eleição dele.
Golpista sustentado por fakenews
A estratégia que passou a usar foi simples: nos embates com os “inimigos”, não se importava com o resultado, mas sim em mostrar para a sua base que não o deixavam governar. Assim, quando algo dava errado, o que quase sempre ocorria, a culpa era atribuída aos outros (Supremo, mídia, governadores, Congresso).
Tal estratégia foi complementada pela formação de um intenso movimento na internet, baseado na criação de falsas notícias (fake news), que foi contaminando o debate político ao longo de quatro anos, fazendo com que milhões de pessoas passassem a ignorar toda fonte de informação que não tivesse origem no “gabinete do ódio”.
Durante seu desgoverno, Bolsonaro demonstrou que, para ele, o importante era fortalecer seu apoio entre os que poderiam levá-lo ao poder absoluto: as Forças Armadas (FFAA), as polícias militares e as milícias que ele foi armando sem limites, até chegar a um número recorde de supostos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), 700 mil militantes armados (e bem armados), organizados em clubes de tiro.
Neofascista
Bolsonaro sempre pregou com clareza a necessidade de um golpe para implantar no Brasil uma ditadura militar de natureza neofascista. Chegou a tentar, sem êxito, esse golpe em vários momentos, notadamente no dia 7 de setembro de 2021.
Luiz Eduardo Ramos apoiador de Bolsonaro – Foto: Reprodução
Para alcançar seus objetivos, conseguiu a cumplicidade de vários generais, os quais estiveram na vanguarda das ofensivas para destruir a democracia. Entre outros, Luiz Eduardo Ramos, Augusto Villas Boas, Braga Netto, Eduardo Pazuello e o próprio Ministro da Defesa, Paulo Sergio de Oliveira, além de almirantes e brigadeiros comandantes de suas respectivas armas. Contou, ainda, com o apoio dos mais de 6 mil militares nomeados para cargos comissionados no governo.
Crimes em série e superpedido de impeachment
Chegando ao poder, Bolsonaro passou a trabalhar para enfraquecer as instituições democráticas, começando por questionar, contraditoriamente, a lisura do processo eleitoral que o levou ao Planalto. Cooptou a PGR, submeteu a PF e a PRF, fragilizou os mecanismos de controle da corrupção, enfrentou o STF, atacou a imprensa tradicional, atritou-se com o Congresso.
O superpedido de impeachment de Bolsonaro, assinado por partidos políticos, parlamentares e entidades da sociedade civil, protocolado na Câmara dos Deputados em 30 de junho de 2021, unificou os argumentos dos outros 123 requerimentos feitos anteriormente e listou 21 crimes por ele cometidos, dentre os quais:
Crime contra o livre exercício dos Poderes; tentar dissolver ou impedir o funcionamento do Congresso; ameaça para constranger juiz; subverter ou tentar subverter a ordem política e social; incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina; crime contra a probidade na administração; e proceder de modo incompatível com o decoro do cargo. Ato: mentiras para obter vantagem política.
Outros tantos crimes por ele cometidos foram indicados no relatório da CPI da Pandemia, dentre os quais, prevaricação, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime; falsificação de documentos particulares, e crimes contra a humanidade (nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos).
Lição para a História
Por isso, o que mais teme Bolsonaro é ser preso após deixar a presidência, quando findará o seu poder sobre as instituições de investigação. As manifestações de bloqueio de estradas, lamentações nos muros dos quartéis e os atos violentos praticados recentemente em Brasília por manifestantes financiados por empresários do agronegócio e apoiados por militares e políticos bolsonaristas, estão sendo usados como massa de manobra e pressão para garantir, junto ao novo governo, a preservação das vantagens, para ele e seus cúmplices, visando, em especial, imunidade a Bolsonaro.
Mas a anistia, acaso viesse a ser concedida, contribuiria fortemente para o futuro retorno de Bolsonaro e daria força aos militares golpistas, renovando o ciclo das ameaças de golpe que eles tentaram e tanto inquietou a sociedade brasileira.
O que os democratas brasileiros esperam é que Bolsonaro, sua família e seus cúmplices sejam processados e condenados pelos crimes que cometeram, assim como que o novo governo promova uma mobilização popular que combata com vigor dois elementos arraigados na nossa sociedade: 1) o bolsonarismo, com seu viés misógino, homofóbico, racista, falso moralista, falso religioso, falso patriota, anticientífico, de insensibilidade à destruição do meio ambiente e adepto da ditadura e da tortura; 2) a ameaça golpista que sempre paira sobre a sociedade brasileira, proveniente da percepção injustificável que os militares têm de que constituem uma casta superior à sociedade civil, uma espécie de poder moderador.
(*) Geólogo, advogado e escritor