Por Nei Lopes*
O escravismo no Brasil e o colonialismo na África usaram, como estratégia de dominação, fragmentar as populações negras, tanto por etnias e linhagens quanto por categorias sociais. “Dividir para dominar” era a regra. Que, embora verbalizada no sentido contrário, ecoou na atualidade brasileira em setembro último, quando o titular do Ministério da Educação afirmou que no Brasil “não existe povo negro”, e sim “brasileiros de pele escura”.
A moderna classificação dos afro-brasileiros como “negros” —mesmo subdivididos em “pretos e pardos”— é uma conquista política e um avanço estatístico: a vasta terminologia antes usada dificultava o mapeamento científico do lugar ocupado pelo segmento afro no conjunto da população, em prejuízo do atendimento às suas necessidades especificas.
Nos mais de três séculos de escravismo, a presença africana no Brasil foi ampla e importante. Até que, inviabilizado o sistema, o Império o aboliu; não sem antes promulgar uma lei, em 1850, negando a ex-escravizados o direito à posse e à propriedade de terras e alargando portas à imigração de colonos vindos do exterior. Assim, com um ato abolicionista vazio, desacompanhado de medidas complementares em favor dos emancipados, reforçou-se a exclusão.
O senso comum negou essa realidade, iludido pelo argumento da mestiçagem, com o qual ainda se busca provar que no país não existe racismo e, sim, casos eventuais de preconceito. Mas a mestiçagem, conforme o saudoso Clóvis Moura, sociólogo afromestiço, é um fato biológico que não se reflete no campo político da democratização das oportunidades.
E a desigualdade se comprova na rara presença de pessoas negras nas principais esferas de decisão, por circunstâncias quase nunca percebidas em suas razões, as quais se devem ao racismo estrutural, nascido com a nação, e em cujo contexto a posição subalterna do indivíduo negro é tida como natural, normal e até mesmo inerente às suas origens.
Em outra linha de pensamento vemos que, já no século 20, as estruturas dominantes desenvolveram ações táticas, partindo do pressuposto de que, com a imigração europeia, a miscigenação da população iria fatalmente levá-la a um “branqueamento”. Alguns cientistas e intelectuais de renome deram sustentação a essa ideia que, avalizada por teses eugênicas, de “aperfeiçoamento” da espécie e higiene, ganhou status de ideologia e forma de política pública. Tanto que, em 1946, o Decreto-Lei nº 7.967 estabeleceu o seguinte: “Os imigrantes serão admitidos de conformidade com a necessidade de preservar e desenvolver o Brasil na composição de sua ascendência europeia”. Mas os objetivos não foram alcançados, como comprovam as estatísticas.
Observe-se que, em inglês e francês, respectivamente, os termos “nigger” e “négro” são ofensivos por conotarem escravidão. Entretanto, na década de 1930, era introduzido na língua francesa o vocábulo “négritude” para significar: a circunstância de se pertencer à coletividade dos africanos e descendentes; e, mais, a consciência de pertencer a essa coletividade e a atitude de reivindicar-se como tal. Vem daí a opção do ativismo afro, no Brasil, pelo qualificativo “negro”, como estratégia de aglutinação na luta pela igualdade —e contra a falácia da “democracia racial” brasileira.Assim, neste momento de repetidas ameaças aos direitos de cidadania, as celebrações da Consciência Negra neste mês de novembro, instituídas por organizações do movimento negro há quase meio século, ganham maior significado.
E se justificam quando, parafraseando o poeta e estadista africano Léopold Senghor, afirmamos a existência e a relevância do povo negro —não como expressão de racismo ou complexo de inferioridade, mas sim com a intenção de, em harmonia com outras correntes de pensamento e ação, construir um humanismo totalmente humano, porque formado por todas as contribuições do ideário progressista, no Brasil e no mundo.
*Nei Lopes – músico e escritor
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo